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Merecia o Guinness? Banda brasileira pode ter gravado 50 mil músicas

André Barcinski

07/04/2020 06h00

Os Carbonos no estúdio: Mario, Raul, Igor Edmundo, Beto e Ricardo Fernandes de Morais


Em 1974, o Livro Guinness dos Recordes cravou a cantora indiana Mangheshkar Bhosle como a detentora da marca de maior número de músicas gravadas, com 25 mil canções. O título foi revisto em 2011, quando o Guinness, depois de reclamações por parte de pesquisadores, mudou sua decisão e apontou a irmã de Mangeshkar, a cantora Asha Bhosle, como a nova recordista, com 11 mil músicas gravadas. O que o Guinness não sabe é que num estúdio da Vila Mariana, em São Paulo, ainda trabalham três irmãos – Mário, Beto e Raul Carezzato – que certamente gravaram mais de 11 mil canções. Num cálculo possível, podem ter chegado a 50 mil músicas.

Desde meados dos anos 1960, os Carezzato formaram, com outros integrantes, o grupo de estúdio mais atuante do pop brasileiro: Os Carbonos.

Escrevi sobre Os Carbonos no livro "Pavões Misteriosos" (2014):

O grande público não conhece Os Carbonos, mas muita gente sabe cantar os hits do pop brasileiro que eles gravaram, como músicos de estúdio: "Feelings" (Morris Albert), "Summer Holiday" (Terry Winter), "Domingo feliz" (Ângelo Máximo), "Aquela nuvem" (Gilliard), "Flying" (Jessé), "Fuscão preto" (Almir Rogério), "Aonde a vaca vai o boi vai atrás" (João da Praia), "É o amor" (Zezé Di Camargo e Luciano), além de dezenas de LPs de Melindrosas, Harmony Cats, Bartô Galeno, Trio Parada Dura, Amado Batista, Carlos Alexandre, Los Maneros, Tony Damito, Marcos Roberto, Chrystian e Ralf e dez LPs de Paulo Sérgio, o maior rival de Roberto Carlos. Somando tudo, os Carbonos são uma das bandas que mais venderam discos no Brasil.

De meados dos anos 1960 ao fim dos anos 1980, eles foram o grupo de estúdio mais atuante de São Paulo, gravando por diversos selos: RGE, Top Tape, AMC, Beverly, Copacabana, Continental, Mocambo, Som Livre e Chantecler. Além do trabalho com outros artistas, lançaram cerca de quarenta LPs próprios, entre discos de covers, músicas italianas, rock, samba, sertanejo e forró. Também gravaram jingles famosos, como "Toddy, sabor que alimenta" e o inesquecível comercial da dedetizadora d.d.drin ("A pulguinha dançando iê-iê-iê, o pernilongo mordendo o meu nenê").

Calcular com exatidão o número de músicas gravadas pelos Carbonos é impossível. O ritmo de trabalho era tão insano que eles não se preocuparam em documentar as sessões de que participaram. Em um dia normal, gravavam a base – guitarra, bateria, teclados e baixo – de pelo menos um LP inteiro, com dez ou doze faixas (essas gravações eram posteriormente finalizadas pelos produtores e arranjadores, que gravavam os vocais dos intérpretes e adicionavam, se necessário, naipes de cordas ou metais. Assim, na maioria das vezes, Os Carbonos nem chegavam a encontrar os artistas que assinavam os discos que eles gravaram).

Os Carbonos praticamente moravam em estúdios. Varavam noites gravando, em sessões de seis horas, e dormiam em sofás ou colchões no chão do estúdio. Trabalhavam de segunda a sábado. Um cálculo possível – dez músicas por dia, cinco dias por semana, durante vinte anos – daria um total de mais de 50 mil músicas. Só para comparar, o lendário baterista Hal Blaine, um dos músicos de estúdio mais prolíficos e celebrados dos Estados Unidos, que tocou com Elvis Presley, Beach Boys, Simon & Garfunkel e The Supremes, calcula ter gravado 35 mil músicas em quatro décadas de carreira.

A base dos Carbonos são os irmãos Mário, Beto e Raul Carezzato. Beto e Raul nasceram em 1946 e são gêmeos não idênticos. Mário é cinco anos mais velho. A família, de origem italiana, tem uma longa história na música. Os tios dos rapazes eram Os Trigêmeos Vocalistas, grupo vocal que fizera sucesso nos anos 1930 e 1940 cantando no Cassino da Urca e na Rádio Nacional (assim como os Carbonos, os Trigêmeos Vocalistas eram formados por dois gêmeos e o irmão mais velho).

Os Carbonos em 2019: Mário, Raul e Beto Carezzato

No início dos anos 1960, quando os Carezzato viviam no bairro Santa Cecília, em São Paulo, os gêmeos Beto e Raul começaram a se interessar por rock. Mário só queria saber de música clássica: formou-se em piano, canto, regência de coral e orquestração e chegou a excursionar pela Europa como barítono do Madrigal da Orquestra de Câmara de São Paulo.

Beto e Raul se juntaram aos amigos "Ricardão" Fernandes de Morais (guitarra) e Igor Edmundo (baixo e guitarra) – um guatemalteco que vivia no Brasil – e, com o nome de Os Quentes, gravaram o primeiro compacto. Logo depois, o baterista Antônio Carlos de Abreu, irmão do autor de novelas Sílvio de Abreu, entrou no grupo, e Mário, o irmão mais velho, assumiu os teclados. Os Quentes foram tocar na boate do hotel Danúbio, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em uma época em que lá se hospedava um grupo de americanos da Força Aérea que faziam levantamentos topográficos no Brasil. Para agradar aos hóspedes, o grupo tocava rock em inglês e também músicas de grupos instrumentais, como The Shadows e The Ventures. Os americanos adoravam.

Impressionada com a qualidade técnica dos rapazes, a gravadora Beverly encomendou um LP de covers com sucessos do momento. Os Quentes gravaram "A praça" (Ronnie Von), "Só vou gostar de quem gosta de mim" (Roberto Carlos), "Coração de papel" (Sérgio Reis) e "Vem quente que eu estou fervendo" (Erasmo Carlos), além de hits internacionais como "With a Girl Like You" (The Troggs) e "Black Is Black" (Los Bravos). Um dia, Beto e Raul andavam pelo centro de São Paulo quando viram vários cartazes anunciando o disco, mas com o nome de outro conjunto: Os Carbonos. A Beverly havia rebatizado o grupo e nem os avisara. O nome, contudo, era perfeito: ninguém copiava músicas com tanta competência quanto eles.

O disco foi o primeiro de uma série, chamada As 12 mais da juventude. Os Carbonos gravaram Beatles ("Ob-la-di, ob-la-da"), Jorge Ben ("Ela é minha menina"), Otis Redding ("Sittin' on, the Dock of the Bay"), Roberto Carlos ("É meu, é meu, é meu"), Procol Harum ("A Whiter Shade of Pale") e muitos outros nomes de sucesso. Às vezes, o conjunto fazia versões antes que as músicas originais chegassem às lojas. Raul conta que os produtores subornavam os funcionários de outras gravadoras para mostrar ao grupo os acetatos (discos "modelo", que serviam de base para a prensagem de LPs) de futuros lançamentos. Os Carbonos decoravam as músicas e corriam para gravá-las no estúdio. A Beverly logo percebeu que o talento dos rapazes não se limitava ao rock e transformou Mário Carezzato no cantor "italiano" Mario Bruno, que gravou a série de discos As 12 mais italianas, com hits da música pop da terra de Rita Pavone.

Ano passado, o programa "Conversa com Bial" homenageou Os Carbonos. Assista aqui.

Os Carbonos chegaram a tocar com Roberto Carlos no programa de TV Jovem Guarda e se firmaram como uma das melhores bandas de baile do país, fazendo longas excursões pelo Norte e Nordeste. Um de seus grandes sucessos foi a série Supererótica, lançada em 1970 com o pseudônimo de Magnetic Sounds, que trazia canções de temas "adultos" como "Doin' It", de Ike Turner, e "Je t'aime, moi non plus", de Serge Gainsbourg. Os gemidos de Jane Birkin foram gravados, na versão brasileira, pela cantora Norma Aguiar, irmã de Nalva Aguiar. Os discos chegavam às lojas com uma tarja que dizia: "Censura 18 anos", além de um texto alertando que a radiofusão e execução das músicas estavam proibidas em locais públicos. Foi um estouro de vendas.

Os rapazes, entretanto, logo cansaram da vida na estrada e passaram a se concentrar no trabalho em estúdios. Em pouco tempo, viraram o conjunto mais procurado por gravadoras e artistas. Além de o grupo tocar em incontáveis discos, os músicos participaram, individualmente, de outros tantos: Raul fez vocais de apoio – junto com Antonio Marcos – em "Aleluia (Che Guevara não morreu)", de Sérgio Ricardo, e "Moça", de Wando, e percussão em "Entre tapas e beijos" (Leandro e Leonardo) e "Comer, comer" (Genghis Khan). Beto tocou baixo em inúmeros discos de Odair José e César Sampaio.

O trabalho no estúdio era extenuante, e o ritmo das gravações, acelerado. Os integrantes dos Carbonos liam partituras, gravavam rapidamente e quase nunca erravam. Muitas vezes, nem sabiam o que estavam gravando. "Os maestros e arranjadores chegavam com as partituras, a gente dava uma olhada e gravava, sempre de primeira", conta Beto. Um dia, o maestro Rogério Duprat, responsável por alguns dos principais arranjos da Tropicália, chegou ao estúdio acompanhado de Jorge Ben e Gal Costa. Duprat disse que queria gravar uma música, mas não tinha partitura. Ele pediu a Beto e Raul que prestassem atenção no violão de Jorge Ben e o acompanhassem. Beto tocou baixo e Raul, percussão. Meses depois, quando ouvia rádio, uma música chamou a atenção de Beto. Era uma canção bonita, suingada, com arranjo lindo e vocais de Gal e Caetano Veloso. Era "Que pena" (do disco Gal Costa, de 1969). "Eu imediatamente reconheci o baixo e a percussão. Fomos nós que gravamos."

Músicos de estúdio raramente recebiam créditos nos discos. Raul diz que se arrepende de ter sido tão relapso com isso: "Queríamos receber pela tabela do sindicato e não nos preocupávamos com os direitos. Hoje, sabemos que isso nos prejudicou".

Prejudicou financeiramente e causou uma injustiça histórica. Porque se os Carbonos tivessem a prova de que tocaram em tantos discos, hoje poderiam estar no Guinness.

Para quem quiser conhecer mais sobre os Carbonos, o quarto episódio de minha série "História Secreta do Pop Brasileiro", disponível nas plataformas Now, Vivo e Looke, é sobre a banda.

MORREU O MAIOR ESCRITOR QUE QUASE NINGUÉM CONHECE

Charles Portis com John Wayne no set de "Bravura Indômita" (1969)

Passou quase despercebida nos EUA – e completamente despercebida por aqui – a morte, em 17 de fevereiro, aos 86 anos, do escritor Charles Portis.

Portis não era muito conhecido do grande público. Seu único sucesso comercial veio em 1968, com o romance "True Grit" ("Bravura Indômita"), adaptado duas vezes para o cinema, uma em 1969, num filme que deu a John Wayne o único Oscar de sua carreira, e outra em 2010 pelos Irmãos Coen, com Jeff Bridges no papel que fora de Wayne.

Portis era um recluso excêntrico que, em 1964, aos 31 anos, abandonou uma promissora carreira de jornalista em Nova York para pescar e escrever no interior do Arkansas. Nesses 56 anos, não deu entrevistas e lançou apenas cinco romances: "Norwood" (1966), "True Grit" (1968), "The Dog of the South" (1979), "Masters of Atlantis" (1985) e "Gringos" (1991), além de uma coletânea de artigos, "Escape Velocity: A Charles Portis Miscellany" (2012).

Nos sites de livros usados achei apenas dois livros em português: "Bravura Indômita" (também chamado "Olho por Olho") e "O Cão do Sul". Leia os dois e não se arrependerá. Se você lê em inglês, sugiro comprar todos. Os livros são curtos (250/300 páginas), engraçadíssimos e viciantes.

Até o fim do ano passado, eu só havia lido "True Grit", mas não sou grande fã de faroestes e confesso que não tinha me empolgado tanto. Mas um artigo num jornal me fez ler "O Cão do Sul", e fiquei absolutamente obcecado pelo cara.

Portis tem um estilo sardônico e um peculiar gosto pela estranheza. Seus personagens são criaturas que vivem à margem do sistema e frequentam festas estranhas de gente esquisita. "O Cão do Sul" é sobre um sujeito que vai ao México atrás da esposa, que fugiu com um de seus melhores amigos. "Gringos" fala de um aventureiro que vive na fronteira entre o México e a Guatemala e se vê envolvido com um culto apocalíptico que sacrifica vidas humanas. E o mais bizarro dos livros de Portis, "Masters of Atlantis", conta a saga de um homem envolvido com uma sociedade secreta que investiga a localização da cidade perdida de Atlântida.

Se você gosta de Pynchon, DeLillo e Bolaño, tem tudo para virar fã de Charles Portis.

Uma ótima semana a todos.

Confira meu site: andrebarcinski.com.br

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

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