O dia em que os fãs roubaram o caixão de Raul Seixas
André Barcinski
27/08/2018 05h58
Quando você viu Raul pela última vez?
No dia do meu aniversário, 16 de agosto [de 1989]. Nós não tínhamos shows no final de semana e ele pediu que eu passasse na casa dele pra me dar um abraço pelo meu aniversário. Ele estava morando perto da Frei Caneca. Cheguei ali de carro e não tinha onde parar o carro. Raul disse: "Pera aí que vou descer!", e desceu de pijama e sapato, no meio da Frei Caneca (risos) e me deu um puta abraço. Foi a última vez que nos vimos.
Ele morreu poucos dias depois…
Cinco dias depois, a empregada dele, a Dalva, me ligou desesperada: "Marcelo, por favor, venha pra cá, acho que o Raul está morto". A primeira pessoa a chegar ao apartamento, antes de mim, foi o José Roberto Abrahão, que era outro grande amigo do Raul, tanto que dedicamos a música "Carpinteiro do Universo" a ele. Zé Roberto era um místico, um mágico, uma dessas figuras tipicamente raulseixistas, e Raul gostava muito dele.
Você viu o corpo de Raul?
Sim. Zé Roberto e eu entramos no quarto de Raul. Ele estava tranquilo, como se estivesse dormindo, e usava o mesmo pijama de dias antes. Se eu não soubesse que ele estava morto, diria que estava dormindo.
O enterro do Raul foi um acontecimento impressionante, não?
Olha, velho, aquilo foi tão surreal que fez a obra de Salvador Dalí parecer um desenho de Walt Disney! (risos) Estávamos numa igreja dentro do cemitério, em Salvador. A igreja estava lotada, parecia um show sold out. Aí começamos a ouvir um barulhão do lado de fora, e de repente uns oitenta ou cem malucos invadem a igreja cantando "Viva… viva… viva a sociedade alternativa!", correm pra cima do caixão e saem de lá levando o caixão!
Como assim? Eles roubaram o caixão?
Sim, levantaram o caixão e saíram. Era uma multidão enlouquecida. Os malucos sacudiam o caixão. Dava para ouvir o barulho do corpo de Raul batendo lá dentro. Eu gritei: "Caralho, que merda é essa? Onde é que vocês pensam que estão indo? Porra, esse cara que tá aí dentro é Raul, vocês estão querendo fazer brincadeira com ele?" Aí um dos caras que estava na frente, comandando a massa, disse: "Espera aê, Marceleza tem razão mesmo, porra, nós viemos aqui pra honrar o cara, não é pra fazer festa não!" Foi esse cara que salvou o dia, que botou a bola no chão e acalmou a massa, porque nego tava louco. Eles queriam levar o corpo de Raul pra passear, pra fumar maconha, pra enfiar baseado na boca dele! (risos). Eles gritavam: "Raul não morreu! Ele tá vivo! Vamos levar ele pra tomar uma!"
Como a família do Raul reagiu?
Bicho, estava todo mundo em estado de choque, inclusive eu. Ao mesmo tempo, a mãe dele me dizia: "Marcelo, se Raul pudesse ver isso, ele ia adorar!" (risos). Foi uma façanha convencer a turba a levar o caixão pra sepultura e colocar o caixão no buraco. Tinha gente que se jogava no meio do caminho: "Não enterre Raulzito!", um negócio completamente louco, fora de controle. E aí, depois de muita controvérsia, muito empurra-empurra, muita palavra de ordem, muito esporro, esse cara, que eu nunca tinha visto e que nunca mais encontrei, foi quem acalmou a multidão e conseguiu que Raul fosse enterrado. Se não fosse por ele, juro que não sei o que teria acontecido. Era bem capaz de eles sequestrarem o corpo e sumir com Raul.
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Sobre o autor
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.
Sobre o blog
Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.