“Disco é Cultura” foi a Lei Rouanet da MPB
André Barcinski
27/04/2018 07h31
O assunto das leis estatais de incentivo cultural voltou à tona nos últimos tempos, devido a casos de mau uso de verbas em eventos culturais patrocinados com dinheiro público.
Outro dia, conversando sobre o assunto com um amigo, ele repetiu uma "verdade" que vejo circulando há um tempão: a de que a indústria do disco brasileira era tão poderosa nos anos 70 que não precisava de leis de incentivo.
A afirmação é equivocada. E a prova está na casa de qualquer um: é só pegar na estante de discos um vinil de qualquer artista brasileiro dos anos 70. Se na contracapa você encontrar a frase "Disco é Cultura", pode ter certeza: esse disco foi beneficiado por uma lei de incentivo estatal.
Criada em 1967, a lei permitia às empresas abater do ICM (Imposto de Circulação de Mercadorias) qualquer gasto com gravações de artistas nacionais. Os discos beneficiados recebiam o selo "Disco é Cultura".
A legislação foi criada, em teoria, para equilibrar a disputa entre gravadoras nacionais e internacionais. As nacionais reclamavam que as rivais gringas levavam vantagens competitivas, já que o custo de lançar discos estrangeiros era bem mais baixo, uma vez que elas não precisavam arcar com despesas de gravação ou de arte para a capa dos lançamentos internacionais, pois tudo vinha pronto do exterior. Apesar de o público brasileiro preferir música nacional (discos de artistas brasileiros representavam 60% a 70% da venda total no país), discos estrangeiros eram mais rentáveis, devido ao uso de matrizes prontas.
O resultado da lei, no entanto, foi o oposto: ela acabou beneficiando as gravadoras estrangeiras, que passaram a usar o dinheiro que economizavam do ICM para contratar artistas brasileiros e, assim, aumentar seus elencos nacionais.
Um caso emblemático é o da Philips. Chefiada pelo esperto e competente André Midani, a gravadora tinha dois selos: o Philips, que reunia a nata da MPB – Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Jair Rodrigues, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Jorge Ben, Raul Seixas, Mutantes e Wilson Simonal, entre outros –, e o Polydor, de artistas mais "populares", como Tim Maia, Evaldo Braga, Odair José e Hyldon.
Apesar de ter em seu elenco quase todos os grandes astros da MPB (a grande exceção era Roberto Carlos, da CBS), a Philips perdia em vendas para suas concorrentes. Entre 1970 e 1972, a gravadora só emplacou um disco no "top 10" de cada ano: os compactos "José", de Rita Lee (oitavo lugar em 1970), "Só quero", de Evaldo Braga (nono lugar em 1971) e "Sua estupidez", de Gal Costa (nono lugar em 1972). Os primeiros lugares das paradas eram dominados pela CBS (Roberto Carlos, Johnny Mathis), RCA (Antonio Marcos, Os Incríveis) e Copacabana (Nelson Ned, Moacyr Franco).
Mesmo não vendendo tanto, a Philips sustentava um elenco caríssimo. E só conseguia isso graças à lei do "Disco é Cultura". O próprio André Midani me disse que a MPB só era "viável" à época por causa da legislação: "Se ela não existisse, a indústria teria sido completamente distinta. Haveria um estreitamento de orçamentos. Com o ICM, eu não tinha medo de investir em meus artistas".
Se o chefe da mais renomada gravadora do país no período diz que a MPB não seria viável sem a lei do " Disco é Cultura",fica a pergunta: como teria sido a cena musical brasileira dos anos 70 em diante, se não houvesse a tal lei?
Um ótimo feriadão a todos. O blog volta quarta, dia 2.
Sobre o autor
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.
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Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.