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A banda mais injustiçada do pop?

André Barcinski

26/03/2018 05h59


Há músicas que passam um tempão sumidas de nossas vidas, só para ressurgirem de repente. Havia muitos anos, por exemplo, que eu não ouvia "Every 1's a Winner" (1978), do Hot Chocolate.

Quando eu era criança, essa música estava em todo lugar: em rádios, bailes e coletâneas da K-Tel. Um dia, sumiu do meu radar.

Há coisa de um ano, achei na web uma versão matadora, gravada por uma banda de que gosto muito, The Murlocs. Confira:

Poucos meses depois, ouvindo "Freedom's Goblin", o novo – e excelente – disco do incansável Ty Segall, fiquei surpreso ao ver que ele também havia regravado a canção:

Tomara que esse renovado interesse leve ouvintes mais jovens a procurar conhecer o Hot Chocolate, porque é uma das bandas mais interessantes e incompreendidas da era da discoteca. Na minha opinião, o Hot Chocolate influenciou tanto a fase "plastic soul" de David Bowie em "Young Americans" (1975) como a new wave de Talking Heads, Tom Tom Club e The Cars, e o pop-soul de Prince e George Michael.

Ouça "You Sexy Thing" (1975) e diga se não poderia ter sido lançada pelo Talking Heads:

O Hot Chocolate nunca foi incensado como uma das grandes bandas da era disco, por duas razões: em primeiro lugar, eram britânicos, e não vinham dos guetos de Nova York ou Filadélfia; em segundo lugar, e mais importante, porque foram uma banda pop inventada por um produtor, o inglês Mickie Most, conhecido por sucessos de Animals, Herman's Hermits, Lulu, Suzi Quatro e Jeff Beck Group, entre muitos outros.

Mas a história do Hot Chocolate começou um pouco antes da chegada de Mickie Most: no fim dos anos 60, Errol Brown, um cantor jamaicano radicado na Inglaterra, juntou uma banda para gravar versões reggae de sucessos da época. Uma das primeiras músicas que regravaram foi "Give Peace a Chance", de John Lennon. Brown precisou pedir autorização da gravadora dos Beatles, a Apple, e descobriu que Lennon não só havia gostado da versão, como queria contratar a banda. Em 1969, a Apple lançou o compacto – horroroso, por sinal – creditado a "The Hot Chocolate Band".

Entra em cena Mickie Most: dono de um ouvido calejado na identificação de potenciais sucessos de rádio, Most contratou a banda e simplificou seu nome: agora seria apenas Hot Chocolate. O currículo de Most era espetacular: ele havia produzido hits para Animals ("The House of the Rising Sun", 1964), Herman's Hermits ("I'm Into Something Good", 1964), Donovan ("Sunshine Superman", 1966), Lulu ("To Sir With Love", 1967) e álbuns para Jeff Beck ("Beck-Ola", 1969) e Yardbirds ("Little Games", 1967).

Mickie Most (de branco), entre Keith Relf e Jimmy Page, dos Yardbirds; à esquerda, a cantora Lulu

Entre os músicos de estúdio que costumavam gravar para Most estavam dois jovens talentosos, o guitarrista Jimmy Page e o baixista John Paul Jones. Foi por intermédio de Most que Page conheceu o agente Peter Grant, que anos depois se tornaria empresário do Led Zeppelin – e um dos mais violentos e temidos homens do showbiz.

Voltando ao Hot Chocolate: quem ouve os primeiros discos do grupo, "Cicero Park" (1974) e "Hot Chocolate" (1975), percebe que estão muito mais para pop do que, propriamente, discoteca. São LPs ecléticos e repletos de grandes canções, além de extremamente bem produzidos. O título de uma faixa de "Cicero Park" resume perfeitamente o disco: "Funky Rock'n'Roll". O Hot Chocolate era isso: uma mistura empolgante de rock e funk.

Entre 1970 e 1984, o Hot Chocolate teve pelo menos uma música por ano na parada do Reino Unido, um feito repetido apenas por Diana Ross e Elvis Presley. "You Sexy Thing" é a única música que chegou ao Top 10 das paradas britânicas nas décadas de 70, 80 e 90. O sucesso dos compactos do Hot Chocolate foi tão grande que obliterou o interesse pelos LPs, que nunca venderam muito bem.

Se a crítica musical nunca tratou Errol Brown com a deferência que merecia, a Rainha Elizabeth 2ª tratou de consertar a injustiça, nomeando o cantor e compositor Membro da Ordem do Império Britânico, em 2003. Errol Brown morreu nas Bahamas, em 2015, aos 71 anos.

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.