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Mark E. Smith (1957-2018): “Isso aqui não é para bebês chorões!”

André Barcinski

24/01/2018 17h52

Nunca vai existir alguém como Mark E. Smith.

Desde que surgiu com The Fall na cena pós-punk britânica do fim dos anos 1970, um dos adjetivos mais usados para defini-lo foi "iconoclasta". Mas isso não me parece correto: iconoclasta é alguém que, por definição, ataca uma crença estabelecida. E Mark E. Smith fez muito pior que atacar: ele simplesmente não se importava.

Não se importava com o punk, o pós-punk, ou qualquer rótulo que tentaram impingir à sua música; não se importava com a imprensa; não se importava com outros integrantes de sua banda, e não se importava sequer com os fãs. Quem criou a expressão "c*gando e andando", devia estar pensando em Mark E. Smith.

Smith, que morreu quarta-feira, aos 60 anos, governou o The Fall como um déspota. Ao longo de quatro décadas, demitiu uns 70 músicos, alguns pelas razões mais prosaicas: um foi embora porque sugeriu uma música ruim no ônibus de excursão da banda; outro levou a bota porque pediu uma salada que Mark julgou indigna dos padrões da banda.

Em 2015, quando foi lançado o documentário "It's Not Repetion, It's Discipline", escrevi sobre Smith:

Quem melhor definiu o Fall foi o radialista inglês John Peel: "Sempre diferente, mas sempre o mesmo".

O Fall não é para todos, mas quem capta o espírito da coisa fica viciado para sempre. Não esqueço Peter Prescott, batera do Mission of Burma, em êxtase ao receber a notícia de que um amigo, também fallmaníaco, havia conseguido uma fita de um show raro. A tara de Prescott era colecionar fitas piratas de shows de Mark E. Smith, e depois tentar decifrar os grunhidos ininteligíveis que Smith emitia entre canções.

Quando surgiu, em 1976, o Fall estava tão à frente e tinha tantas ideias a mais – e mais interessantes – que seus contemporâneos da cena punk, que seria necessário criar um novo subgênero musical só para enquadrar a banda.

Smith era obcecado pelo krautrock de Can e Faust, adorava Stooges, Captain Beefheart e Velvet Underground, lia Camus (daí o nome da banda), Hunter Thompson e Arthur Machen. O som do Fall, pelo menos no início, era um esporro abrasivo que lembrava bandas de garagem dos anos 60 que haviam acabado de descobrir pedais de distorção, enfeiado pela voz lamurienta e arrastada de Smith, soando eternamente bêbado.

Mas era um bêbado sábio. Ninguém da sua geração fez letras tão minimalistas e ácidas quanto ele. Nem Morrissey. Smith falava, à sua maneira, da vida cinzenta e proletária de Manchester, de pinguços enchendo a cara em pubs, da nostalgia de um mundo mais simples. Tudo sem um pingo de sentimentalismo, que lamentação é coisa de fresco.

Quando o assunto é a crônica da classe baixa britânica, bêbada e branca, Smith só tem um rival à altura: Ray Davies, do Kinks. A diferença é que Davies sempre foi um homem do álcool, enquanto Smith vivia para a anfetamina. "Totally wired", como ele mesmo diz em uma de suas melhores canções.

Nesses mais de 40 anos de Fall, Mark E. Smith perdeu a conta de quantos músicos despediu. Uma matéria de 2011 do "Independent" contabilizou 66. Nesse tempo, lançou mais de 30 discos de estúdio, todos iguais mas diferentes. Fez punk, pós-punk, teve uma fase meio eletrônica no início dos 90, tentou de tudo sem nunca deixar de ser o Fall (um excelente ponto de partida para quem não conhece a banda é a coletânea dupla "50000 Fall Fans Can't Be Wrong", com 39 canções do período 1978 a 2003).

Outro bom documento sobre Smith e o Fall é o filme "It's Not Repetion, It's Discipline". É uma produção independente, bancada e dirigida por três fãs dinamarqueses, que encheram o saco de Smith por quase uma década, até ele concordar em dar entrevistas.

O filme é de uma precariedade técnica lamentável, com um som horroroso e filmagem amadora, mas as entrevistas são excelentes, incluindo depoimentos de fãs como Henry Rollins, Thurston Moore, Peter Hook, John Peel e Stephen Malkmus, e testemunhos de membros e ex-membros do grupo.

O melhor papo do filme é com Grant Showbiz, produtor que fez 16 discos do Fall e trabalhou com The Smiths e Alternative TV, entre outros. Grant descreve os métodos heterodoxos de Smith no estúdio, que incluem mexer nos botões de controle do mixer, aparentemente sem saber o que está fazendo, até obter um som cuja estranheza o satisfaça.

O produtor, que também fez o som de incontáveis turnês do Fall, diz que cansou de ver Smith escrever letras durante passagens de som, inspirado por acontecimentos repentinos. "Mark é um dos mais brilhantes letristas que a música inglesa já teve".

Também é um dos sujeitos mais bipolares e imprevisíveis, conhecido por despedir músicos pelas razões mais mundanas. "Esse mito de que eu mando as pessoas embora é extremamente exagerado," diz Smith no documentário. "São os músicos, na maioria das vezes, que pedem pra sair. Eles fazem 30 anos, têm filhos, começam a ter responsabilidades e não aguentam mais o ritmo e a responsabilidade de tocar no Fall. Isso aqui não é para bebês chorões."

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

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Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.