O anti-Rock in Rio
André Barcinski
18/09/2017 05h59
Esse fim de semana começou o Rock in Rio. Espero que o pessoal tenha se divertido a valer com Maroon 5 tocando "Garota de Ipanema" e Gisele Bundchen interpretando "Imagine". E enquanto Ivete anunciava sua gravidez no Rio, do outro lado do Atlântico – em Angers, cidade a 300 km a sudoeste de Paris – acontecia um festival bem diferente: o Levitation.
Nesse festival não tem tirolesa ou área vip. O ingresso não custa meio salário mínimo, mas 100 reais por noite. O público não vai para ouvir artistas que já conhece, mas para descobrir novas bandas. Das 21 atrações escaladas, eu só conhecia sete.
Sou muito fã do Levitation. Já fui algumas vezes à edição principal do festival, que rola em abril numa fazenda em Austin, no Texas, Estados Unidos. Há cinco anos, o evento começou uma edição menor na França. O Levitation foi criado pelos integrantes da excelente banda texana The Black Angels, que atuam como curadores. O line-up costuma ser muito eclético: além do rock de garagem, stoner, noise, shoegaze e neo-psychedelia, o evento traz artistas de blues-rock dos desertos da África, música indiana, dub, eletrônica, dream pop, ambient, drone e outros estilos, sempre privilegiando a música mais alternativa e experimental.
Conheci muita música boa graças ao festival: Moon Duo, Woods, Bombino, Terakaft, White Fence, Temples, The ZZZ's, Night Beats, GOASTT, Follakzoid, DIIV, Ryley Walker, Chui Wan, Kadavar, Lorelle Meets the Obsolete, Eternal Tapestry, Dead Meadow, Samsara Blues Experiment e vários outros.
Por se tratar de um festival organizado pelo Black Angels, muitas bandas conhecidas topam se apresentar por cachês mais baixos, o que possibilita ver shows de gente como Tame Impala, Flaming Lips, The War on Drugs, Jesus and Mary Chain, Dandy Warhols e Brian Jonestown Massacre para 3 ou 4 mil pessoas (ano passado o festival teria Brian Wilson, Lee Scratch Perry, Flying Lotus e Animal Collective, mas uma tempestade cancelou o evento). No festival, vi ótimos shows de Thee Oh Sees, Sleep, Earth, Fat White Family, Fuzz e Lightning Bolt, além de bandas veteranas como 13th Floor Elevators, Zombies e The Golden Dawn.
O Levitation da França acontece em dois palcos (mas sem shows simultâneos) no teatro Quai, um centro cultural público às margens do Maine, rio que corta Angers. A cidade tem 150 mil habitantes e é considerada um dos melhores lugares para viver na França. De fato, dá gosto andar por Angers: a cidade é linda, com um centro histórico medieval (destaque para o embasbacante Castelo de Angers e sua "Tapeçaria do Apocalipse", uma peça de mais de 100 metros de comprimento por seis metros de altura, das obras de arte mais impressionantes que já vi), arquitetura deslumbrante, restaurantes ótimos, uma infinidade de vinhedos, áreas verdes e ciclovias, e uma população jovem que estuda nas muitas universidades e escolas da região).
SEXTA,DIA 15
Chegamos cedo para conferir o Ulrika Spacek, um quinteto inglês que mistura distorção à Velvet Underground com passagens mais melódicas e suaves. Já havíamos gostado dos discos, e o show foi melhor ainda.
Logo depois vieram os japoneses do Bo Ningen. Se os discos soam tranquilos, ao vivo o som foi uma paulada impressionante, um metal-progressivo torto e barulhento, que terminou com uma parede de microfonia à My Bloody Valentine. Legal demais.
Em seguida veio o duo britânico The KVB, que faz um excelente synthpop com influências góticas e pós-punks. Se a sua praia é Cabaret Voltaire, Bauhaus e a fase deprê do The Cure, você vai gostar. O duo fez uma versão sombria e dançante de "Sympathy for the Devil", dos Stones. Tudo a ver.
Veja o KVB tocando "White Walls" no festival Endless Daze, em 2016:
Depois foi a vez do Group Doueh & Cheveu, que reúne músicos africanos e franceses fazendo uma leitura dançante e eletrônica da música desértica norte-africana.
A grande surpresa da noite para nós foi o Forest Swords, projeto eletrônico do inglês Matthew Barnes, que faz um dub eletrônico denso e pesado, com grande influência de bleep techno. Sensacional.
A atração que fechou o palco principal na sexta foi o Slowdive, grande banda shoegaze inglesa, que retornou em 2017 com seu primeiro disco em 22 anos. A música do Slowdive é intensa e bonita, passando de momentos de barulho e montanhas de guitarras a trechos silenciosos e etéreos.
O Slowdive foi legal,mas o show que encerrou a noite, no palco 2, foi antológico: os japoneses do Acid Mothers Temple.
O AMT tem pouco mais de 20 anos e é liderado pelo guitarrista Kawabata Makoto, um veterano da cena noise-psicodélica japonesa desde o fim dos anos 70. Nessas duas décadas, Makoto já lançou mais de 130 discos com o AMT. Alguns discos são muito bons, mas nenhum faz justiça ao que a banda faz em cima do palco. É a coisa mais insana e imprevisível que já vi.
O grupo tem três músicos excepcionais – o baterista Satoshima Nani, o baixista ST e o guitarrista Tabata Mitsuru (imagine o Abel Braga de drag e você terá uma ideia do visual do figura) – que fazem a base das canções, enquanto Makoto e o incrível Higashi Hiroshi (que parece uma versão japonesa do Mestre dos Magos) ficam livres para improvisar. Makoto e sua Stratocaster tiram distorções de Hendrix e insanidades de Zappa, enquanto Hiroshi pilota os sintetizadores e um theremin. O resultado é inclassificável, uma mistura psicótica de metal, psicodelia, free jazz, blues e progressivo. Já vi dois shows da banda, e o resultado é sempre o mesmo: ninguém conhece as músicas, mas em cinco minutos o público todo está urrando e pulando.
O Acid Mothers Temple é a banda punk por excelência, e segue com estoicismo japonês a cartilha do "faça você mesmo": os caras não têm roadies e montam o próprio equipamento. Assim que terminou o show, três deles correram para vender camisetas e discos para o público, enquanto Makoto e o baterista desmontavam o palco e carregavam os amplificadores. Será que o cara do Marron 5 sabe desmontar uma bateria?
SÁBADO, DIA 16
Comparada às esquisitices da sexta, a programação de sábado foi bem mais conservadora e chocha, com predomínio de bandas indies fofinhas, branquinhas e boazinhas demais. Mas houve algumas exceções…
Foi uma pena o cancelamento dos franceses do Villejuif Underground, que gostaríamos de ter visto. O chileno The Holydrug Couple fez um show correto, mas um tanto careta.
Chato mesmo foi o power pop dos frances Petit Fantôme e dos ingleses Beach Fossils. A impressão é que o festival quis agradar ao público universitário de Angers e escalou essas duas bandinhas sem graça e sem perigo. Já diz o filósofo Beavis: universitários não sabem o que é rock.
A coisa só melhorou mesmo com o trio de noise-rock nova-iorquino A Place to Bury Strangers, que faz um som dark, rápido e pesadíssimo, uma versão mais acelerada e esporrenta do Black Rebel Motorcycle Club. O visual do show é neo-gótico, com direito a strobos à Jesus and Mary Chain e Sisters of Mercy. Depois da fofura do Petit Fantôme, foi um alívio ver e ouvir uma banda tão barulhenta.
O melhor, como esperado, veio no fim: The Black Angels.
O quinteto texano está no meio da turnê de lançamento de seu quinto álbum de estúdio, "The Death Song", e foi a grande atração do festival. Fez um show de quase duas horas para uma plateia de fanáticos que conhecia todas as músicas.
Como sempre, o show começa com um trecho de "The Black Angel's Death Song", música do Velvet Underground que dá nome à banda. A fixação com o Velvet é tamanha que o Black Angels tem até uma baterista, a ótima Stephanie Bailey, e ao longo do show toca trechos de algumas canções do grupo de Lou Reed e John Cale, como "All Tomorrow's Parties"
Mas o Black Angels está longe de ser uma banda saudosista. Mesmo buscando inspiração na microfonia do Velvet, na psicodelia dos conterrâneos do 13th Floor Elevators e nos acordes pesados do Black Sabbath, a música não soa retrô.
Como muitas outras bandas texanas – Butthole Surfers, Lift to Experience, Mars Volta, And You Will KNow Us By the Trail of Dead, Explosions in the Sky – o Black Angels habita a seara da psicodelia mais dark e ameaçadora. Nada de flores no cabelo e hippies dançando ao luar: a praia aqui é bem mais sombria. O show do Black Angels tem uma aura de violência e mistério, com letras que invariavelmente falam de morte e dor (duas das músicas mais famosas da banda têm por título "Más Vibrações" e "Não Brinque com Armas").
Não é, definitivamente, som de festa. Mas foi o encerramento perfeito para uma noite que se desenhava tão indie-fofa.
Sobre o autor
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.
Sobre o blog
Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.