Coitado do John Lennon
André Barcinski
16/09/2017 13h54
Difícil imaginar uma cena mais ridícula do que a übermodel biliardária Gisele Bundchen e a megacelebridade cantora Ivete Sangalo de mãos dadas, assassinando "Imagine", de John Lennon.
E não digo "assassinando" por motivos artísticos, mas ideológicos: o que as duas fizeram foi extirpar da canção todo o seu sentido, dando a ela um significado muito diferente daquele imaginado por Lennon.
"Imagine" virou uma espécie de hino pela paz, mas na verdade sua melodia doce esconde uma mensagem radical. Na letra, Lennon pede que o ouvinte imagine um mundo sem religiões, sem países e – atenção, camarote VIP do Rock in Rio – sem possessões materiais. Cantar sobre um mundo sem possessões materiais num festival que tem anúncios até nos banheiros? Boa, Gisele.
Quando escreveu a letra, em 1971, Lennon estava envolvido com uma série de causas, como o movimento contra a Guerra do Vietnã, o feminismo e o movimento negro. Era uma época de radicalismo político em todo o mundo, com a Guerra Fria dividindo o planeta, o medo de uma guerra nuclear e conflitos entre policiais e estudantes nos Estados Unidos.
Para muita gente, foi um choque ouvir um ex-Beatle pedindo um mundo sem fronteiras e sem religião. O então presidente norte-americano, Richard Nixon, mandou o FBI vigiar Lennon, que chegou a ser ameaçado de expulsão do país por atividades subversivas (ele só receberia o visto permanente em 1976).
É uma pena, portanto, que uma canção como "Imagine" tenha virado o "Parabéns pra você" das campanhas pela paz, entoada sempre que alguém quer trombetear a própria bondade.
Lennon foi um artista que soube usar a fama para chamar a atenção para causas que considerava importantes, mas nunca subiria num palco para anunciar que Yoko estava grávida de gêmeos, ou apoiaria um projeto que pediu 8,8 milhões de reais em dinheiro público para fazer um show em prol da Amazônia (veja aqui).
Por favor, deixem o coitado dormir em paz.
Sobre o autor
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.
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Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.