Adeus, Rogéria!
André Barcinski
04/09/2017 23h30
Rogéria se foi. Tive a sorte de dirigi-la por três anos no programa "Preliminares", no Canal Brasil, em que ela interpretava uma cafetina que dava conselhos amorosos. Foi um dos trabalhos mais divertidos que já tive.
Rogéria era engraçada demais. Andar com ela pelo Leme, onde morava, não era fácil, tantas as paradas para falar sobre o resultado do futebol com o dono da banca de jornal, mandar um beijo para o dono da padaria ou perguntar como estava a mãe doente do apontador do jogo de bicho. Ela era praticamente a prefeita do Leme.
Foi uma artista talentosa e importante, "o travesti da família brasileira", como gostava de dizer. Em homenagem a Rogéria, republico um texto que fiz em 2012 sobre uma filmagem conturbada em São Paulo…
NO CAOS DE SÃO PAULO COM ROGÉRIA
Estive ontem num estúdio em Pinheiros gravando um programa de TV apresentado pela mitológica Rogéria.
Tudo ia bem até o meio da tarde, quando um estrondo interrompeu a gravação. Parecia que o telhado estava desabando.
Fui à rua ver o que estava acontecendo. Pedaços de gelo do tamanho de bolas de gude caíam, amassando carros e quicando na calçada. Já vi granizo em São Paulo antes, mas nunca com aquela intensidade.
Em poucos minutos, a rua toda ficou coberta por uma camada de 20 centímetros de gelo. O granizo entupiu as calhas do prédio e a água começou a invadir o estúdio.
Enquanto o mundo caía lá fora e a equipe tentava impedir a inundação, Rogéria, completamente alheia ao caos, contava a uma assistente casos de sua primeira viagem ao Irã, nos anos 70.
Interrompemos a gravação. O carro que deveria buscar Rogéria e sua "entourage" – o "stylist" Ronald e o assistente Lucas – estava parado num engarrafamento monstruoso e não conseguiu chegar a Pinheiros. Tentamos vários pontos de táxi na região, sem sucesso.
A única solução para levá-los ao hotel, na Paulista (Rogéria mora no Rio), era o metrô. Rogéria, num bom humor tremendo, achou a idéia ótima: "Faz anos que não ando de metrô em São Paulo, vai ser uma aventura!"
E foi mesmo. Primeiro, andar pelo Largo da Batata com Rogéria, de salto, lenço na cabeça e um óculos escuros Prada, sendo cumprimentada e chamada de "linda" e "gostosa" por várias pessoas. "Eu amo São Paulo, aqui eles sabem reconhecer os artistas."
No metrô Faria Lima, outro caos: a fila chegava quase à rua.
Sugeri procurar um restaurante para esperar o pandemônio passar. O bairro todo estava sem luz e os faróis de trânsito, apagados. Pinheiros era uma visão do inferno. Rogéria não se abalou: "Vamos andar a pé, assim eu conheço um pouco do bairro!"
Andamos uns oito quarteirões e paramos numa cantina. O lugar estava sem luz, mas o mâitre foi gentil e nos atendeu. Rogéria aprovou a comida: "Nem em Roma comi uma massa como a sua, dê os parabéns ao chef!"
Paramos na Rua dos Pinheiros para tentar um táxi. Os dois assistentes de Rogéria e eu ficamos pelo menos 20 minutos numa esquina, gritando para os carros que passavam. Ninguém parou.
Rogéria resolveu agir: "Meus amores, podem deixar que eu vou chamar um táxi. São Paulo não vai deixar Rogéria a pé!" E ficou na esquina, com o braço esticado, gritando "Uhuuuu! Pelo amor de Deeeeeeeus, um táxi! Ajuuuudem!" Em três minutos, um táxi parou.
O carro subiu a Rebouças, que estava em obras. Quase fomos abalroados por um trator – juro, parecia uma miragem – que subia a avenida às sete e meia da noite. Levamos quase uma hora para chegar à Consolação.
Rogéria parecia estar se divertindo. Sentada no banco da frente, contava ao motorista histórias de suas primeiras visitas a São Paulo, nos anos 60: "A gente ia às boates ouvir bolero, coisa chique, não esses bate-estacas horríveis de hoje."
Quando o táxi passou em frente à Nostromondo, famosa boate gay na Consolação, ela não se conteve: "Ah, a Nostro… Quantos shows não fiz lá? Quantos prêmios não ganhei ? Que saudades!
Levamos mais 40 minutos para andar três quarteirões na Paulista. A paciência de Rogéria parecia estar chegando ao fim: "Gente, o que é isso? Nunca vi um engarrafamento desses, Deus me livre. Que horror." O clima azedou. Até que outro táxi emparelhou com o nosso, e o motorista a reconheceu: "Rogéria, você está linda, cada dia mais jovem!". "Ah, meu amor, que bondade a sua! Você é que está lindo, com esse bigode chiquérrimo! Deus te abençoe, querido!"
E virou-se para nós, no banco de trás:
"Puta que pariu, eu amo essa cidade!"
Sobre o autor
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.
Sobre o blog
Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.