Aventuras no interior do cérebro
André Barcinski
11/01/2017 05h59
Um dos livros mais emocionantes e cheios de suspense que li em 2016 se passa quase inteiramente em salas de cirurgia e com o personagem principal desacordado. É "Sem causar mal – histórias de vida, morte e neurocirurgia", de Henry Marsh (Editora nVersos).
Marsh tem 66 anos e é um dos neurocirurgiões mais conhecidos da Inglaterra. No livro ele relata mais de 20 cirurgias que realizou ao longo das últimas três décadas. Cada capítulo leva o nome de um tipo de um tipo de lesão, doença ou tumor tratado na operação ("Pineocitoma", "Glioblastoma", "Mutismo acinético").
O estilo literário de Marsh é seco e direto, sem um pingo de sentimentalismo. Ele descreve os procedimentos com uma linguagem simples e acessível a leigos, e fala, sem rodeios, da relação muitas vezes dolorosa entre médico e paciente. Quando um paciente tem grande chance de morrer durante a cirurgia, Marsh diz isso claramente: "Se operarmos, você tem 30% de chance de sobreviver; se não operarmos, você morrerá em poucas semanas".
Além da descrição das operações e histórias dos pacientes, Marsh também fala bastante sobre as inovações tecnológicas que vêm tornando a neurocirurgia cada vez mais segura. Por outro lado, esculhamba a burocracia estatal inglesa, que, segundo ele, vem tornando mais difícil a vida dos cirurgiões e de seus pacientes.
Um dos trechos mais interessantes do livro relata viagens que Marsh fez à Ucrânia, nos anos 80, para visitar um centro médico e ensinar técnicas aos neurocirurgiões locais. A descrição das péssimas condições de trabalho dos profissionais ucranianos e as consequências trágicas na vida dos pacientes são impressionantes.
Livros sobre procedimentos médicos costumam ser cheios de lições de moral e histórias "edificantes", mas o mundo de Henry Marsh não tem anjos, milagres ou fábulas de redenção. Quando ele comete um erro bobo durante uma cirurgia, o sangue escorre "como uma cachoeira" e o paciente passa o resto da vida em estado vegetativo. Marsh se penitencia, mas não por muito tempo. Ele sabe que logo precisará voltar à sala de cirurgia para tirar um tumor da cabeça de outro paciente.
Sobre o autor
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.
Sobre o blog
Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.