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Loucura, solidão e morte: os 50 anos da regata mais perigosa do mundo

André Barcinski

26/10/2018 05h59

Donald Crowhurst nunca voltou da regata…

Depois de entrar e sair do catálogo da Netflix, voltou ao YouTube, na íntegra, um dos melhores documentários sobre navegação já feitos: " Deep Water" (2006), de Jerry Rothwell e Louise Osmond. A história narrada no filme está completando 50 anos e merece ser lembrada.

Em 2013, escrevi aqui no blog:

"Deep Water" conta a saga da trágica regata solitária de volta ao mundo promovida pelo jornal inglês "Sunday Times" em 1968.


O documentário foi baseado no livro "Uma Viagem para Loucos", de Peter Nicholls, lançado no Brasil em 2002 pela editora Objetiva.

O "Sunday Times" teve a ideia de promover a regata em 1966, depois que o navegador inglês Francis Chichester completou sua lendária volta solitária ao mundo em nove meses e um dia, a bordo do veleiro Gipsy Moth IV.

Chichester velejou sozinho pela "Clipper Route", uma rota tradicionalmente usada por navios ingleses do século 18 para chegar à Austrália. A rota consiste em descer o Atlântico, circundar a África pelo Cabo da Boa Esperança e dar a volta ao globo, retornando pelo sul da América do Sul e fazendo a volta à Europa pelo Cabo Horn. No trajeto, Chichester fez uma parada na Austrália.

Depois da viagem de Chichester, só havia um feito que nenhum navegador havia tentado: dar a volta ao mundo sem parar.

Em 1968, o jornal inglês "Sunday Times" anunciou a primeira regara solitária ininterrupta do mundo, oferecendo ao vencedor um prêmio de cinco mil libras. Os barcos podiam partir da Inglaterra em qualquer data entre 1º de junho e 31 de outubro, e os tempos de viagem seriam comparados para se chegar ao vencedor.

Nove barcos foram inscritos. Apenas um chegou ao destino.

"Deep Water" foca em três competidores: o francês Bernard Moitessier e os ingleses Robin Knox-Johnston e Donald Crowhurst.

Moitessier e Knox-Johnson eram velejadores de primeira categoria, acostumados a longas travessias oceânicas, e logo passaram a disputar a liderança da prova.

Já Donald Crowhurst era um velejador de fim de semana, que viu na corrida a chance de ganhar algum dinheiro e ajudar a família. Ele construiu o próprio barco, um trimarã de 40 pés (12 metros) chamado Teignmouth Electron, e partiu para a volta ao mundo, sem ter experiência em longas travessias. Era quase uma missão suicida.

Atenção: o texto a seguir contém spoilers; se não quiser saber o fim da história, pare por aqui.

Quando os velejadores começaram a enviar, por rádio, suas coordenadas, todo mundo levou um susto: Crowhurst estava liderando a prova. Por várias semanas, a imprensa de todo o mundo noticiou que um azarão estava à frente da regata mais famosa de todos os tempos.

Na verdade, a situação era oposta: Crowhurst mentia quanto às suas coordenadas; dizia estar perto da Austrália quando, de fato, flutuava na costa brasileira. Seu plano era esperar vários meses até que os competidores estivessem voltando e encontrá-los na subida à Europa.

Os diários de bordo de Crowhurst revelam que ele estava sofrendo crises de demência, pioradas pela solidão. Imagens filmadas pelo próprio Crowhurst – cada competidor recebeu câmeras e filme para registrar a viagem – o mostram falando sozinho, em estado psicótico.

Crowhurst tinha medo de que sua farsa fosse descoberta e sua família, humilhada. Ele não agüentou a barra e cometeu suicídio, se jogando no Atlântico. O Teignmouth Electron foi encontrado à deriva no Caribe.

E a disputa entre Knox-Johnston e Moitessier nunca foi concluída. Knox-Johnston foi o único velejador a concluir a travessia. Já o francês teve uma epifania, decidiu que o mar não era lugar para competição, abandonou a corrida, deu mais uma volta ao mundo e foi parar no Taiti.

Anos depois, Moitessier escreveria um livro, "O Longo Caminho", lançado no Brasil pela Edições Marítimas, em que explica sua decisão. O francês virou uma lenda para velejadores de todo o mundo.

Um ótimo fim de semana a todos.

Visite meu site: andrebarcinski.com.br

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.