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O dia em que Clodovil esnobou o Motörhead

André Barcinski

17/10/2018 05h59

Se estivesse vivo, Michael Burston, mais conhecido por Würzel, completaria 71 anos no dia 23 de outubro. Würzel tocou por mais de uma década no Motörhead e gravou seis discos de estúdio.

Michael ganhou o apelido de Wurzel quando servia o exército. Os amigos achavam que o cabelo desgrenhado de Michael lembrava o de Worzel Gummidge, espantalho falante de uma série de livros infantis ingleses que foram adaptados para TV.

Quando se juntou ao Motörhead, em 1984, Wurzel ganhou um trema no "u", por sugestão de Lemmy, que achava tremas "muito heavy metal". Nascia Würzel.

Lembrei Würzel esses dias, ao encontrar uma velha foto que fiz com ele e Lemmy, em 1989, na primeira passagem da banda pelo Brasil. Lemmy, como de hábito, levantava um copo de Jack Daniel's, enquanto Würzel, como de hábito, fazia uma palhaçada qualquer.

Nesse mesmo dia, aconteceu uma história das mais bizarras, envolvendo o Motörhead e, acreditem, o estilista Clodovil (1937-2009).

Em 2013, relatei a história na "Ilustríssima", da Folha:

A memória é traiçoeira. Ela pode deixar lembranças intocadas em nosso subconsciente, guardadas como um livro esquecido na estante. Às vezes, basta um empurrãozinho, uma fagulha, para ressuscitar histórias há muito adormecidas.

Foi o que aconteceu há algumas semanas, quando fui visitar um familiar internado em um hospital no Rio de Janeiro. Fazia quase três décadas que eu não entrava no prédio. Assim que entrei, a história me voltou inteira: era março de 1989. Aquele hospital era um hotel, eu era fotógrafo, e estava no local para fotografar uma banda de rock que tocaria no Rio no dia seguinte: o Motörhead.

Todo fã de rock pesado venera o Motörhead e seu líder, Lemmy Kilmister. Nascido no Natal de 1945, Lemmy é uma lenda do rock, um ícone da vida libertina e hedonista. Na mitologia do "sexo, drogas e rock'n'roll", ele só tem um adversário à altura: Keith Richards.

Lemmy foi "roadie" de Jimi Hendrix e baixista do Hawkwind, uma comuna/gangue que vivia numa dieta de LSD e tocava uma animalesca mistura de punk e rock progressivo. Lemmy conseguiu a proeza de ser demitido do Hawkwind por mau comportamento. Em 1975, durante uma turnê, ele foi preso na fronteira dos Estados Unidos e Canadá por porte de drogas. Expulso do Hawkwind, Lemmy fundou o Motörhead, gíria usada para identificar viciados em anfetaminas.

Em sua hilariante autobiografia, "White Line Fever", Lemmy conta que bebe uma garrafa de Jack Daniel's por dia, já dormiu com 1200 mulheres e resolveu doar o corpo à ciência, para que alguém estude o segredo de sua longevidade. "Em 1980, resolvi trocar todo meu sangue, para não precisar fazer 'detox', mas o médico disse que sangue puro iria me matar: 'Você não tem mais sangue puro em suas veias', me disse o doutor. 'E se você doar sangue, a pessoa morre na hora. Você é tóxico.'"

No lobby do hotel, Lemmy e sua banda, os guitarristas Würzel e Phil Campbell e o baterista Philty "Animal" Taylor, conversavam com jornalistas e fãs. Falei com o agente, que reuniu os quatro para uma foto. Encontrei um lugar mais reservado, num bar que ficava no segundo andar do hotel.

Assim que chegamos ao bar, vi uma pessoa sentada numa poltrona, com um cãozinho nos braços. Não lembro se era um poodle ou um pequinês, mas era um daqueles bichos pequenos, fofos e barulhentos. Imediatamente reconheci a figura: era Clodovil.

Eu precisava conseguir uma foto de Clodovil com o Motörhead. A idéia de colocar aquela horda de vikings junto com o apresentador de "Clô para os Íntimos" era tentadora demais. E o poodle seria a cereja no bolo.

Sempre achei graça na justaposição de figuras "diferentes": anos depois, consegui fotografar o cantor do grupo de pós-punk Echo and the Bunnymen, Ian McCulloch, abraçando o pagodeiro Alexandre Pires. Também tentei, sem sucesso, juntar na mesma foto Catherine Deneuve e Zé do Caixão.

Voltando ao Motorhead: fiz rapidamente as fotos da banda e perguntei a Lemmy se eles se importariam em tirar uma foto com uma "celebridade da TV brasileira". Lemmy perguntou quem era. Expliquei que era um famoso estilista, uma figura muito popular e meio excêntrica. A única definição que me veio à cabeça na hora foi "o Liberace brasileiro". "Liberace? Mas ele é pianista?", perguntou Lemmy. "Ok, pode chamar, mas rápido."

Fui falar com Clodovil. Disse que a banda era muito famosa e que adoraria tirar uma foto com ele. Clodovil deu uma olhada para os quatro, virou-se para mim e disse: "Meu bem, não dá." Não houve jeito de convencer Clodovil. E a imagem dele, poodle nos braços, ao lado de Lemmy e do Motörhead, só existe em minha imaginação.

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.