Topo

Jornalismo em crise: uma grande revista sucumbe ao tribunal do Twitter

André Barcinski

12/09/2018 05h59

Em meio à crise global do jornalismo, com fechamento de jornais e revistas e perda de receitas publicitárias, algumas publicações conseguiram manter seu prestígio intacto.

A "The New Yorker" é uma delas. A revista existe desde 1925 e continua a ser uma referência devido à qualidade de suas reportagens, críticas e ensaios. Há 20 anos, a publicação é editada por David Remnick, um jornalista talentoso que ganhou um Pulitzer por uma excelente biografia de Muhammad Ali, "King of the World".

Esses dias, Remnick e a "The New Yorker" se envolveram numa polêmica que, para alguns, abalou a credibilidade da revista e mostrou que até publicações respeitadas se curvam a pressões de redes sociais.

Tudo começou quando a revista anunciou, entre as atrações de seu badalado "New Yorker Festival" (uma série de debates e palestras que acontece em outubro), uma entrevista que o próprio David Remnick faria com Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump.

Bannon é uma figura polêmica nos Estados Unidos: ex-chefe do Breitbart News, um site de direita que cansou de publicar matérias inventadas e textos racistas e xenófobos, trabalhou por sete meses na Casa Branca de Trump, até brigar com o chefe.

A reação das redes sociais foi imediata: muita gente ameaçou cancelar a assinatura da revista caso a entrevista acontecesse. Outros convidados do evento, como os comediantes Jim Carrey e Judd Apatow, disseram que pulariam fora caso Bannon fosse escalado.

Aí, Remnick fez o que eu, que sempre admirei seus textos e estilo, não esperava: capitulou ao tribunal do Twitter e retirou o convite a Bannon.

O editor da "The New Yorker", David Remnick (esq.), retirou o convite a Steve Bannon

"A reação na mídia social foi imensa, e o choque e raiva foram direcionados a mim e à minha decisão de convidar Bannon. Alguns membros da redação da revista também se mostraram contrários ao convite", escreveu Remnick, tentando justificar o injustificável.

Beira o inacreditável que jornalistas de uma redação prestigiosa como a da "The New Yorker" se sintam ofendidos com a presença de alguém em sua festinha, mesmo um ser execrável como Bannon. Se eu estivesse lá, não só acharia fantástico ter a chance de assistir a uma entrevista com ele, mas pediria para participar dela.

Felizmente, nem todo mundo concordou com a decisão de Remnick. O colunista Bret Stephens, do "The New York Times", deu-lhe uma merecida sapatada:

"O que isso significa de verdade é que o editor da 'The New Yorker' não é mais Remnick, mas o Twitter (…)

Uma jornalista da revista, Kathryn Schulz, escreveu no Twitter que estava 'além de horrorizada' e convidou leitores a escrever para Remnick para pressioná-lo. Isso é uma declaração assombrosa vinda de qualquer jornalista que acredita que sua vocação deve ser a de fazer perguntas duras para pessoas influentes, particularmente pessoas ruins (…)

Não faz tanto tempo que um desafio público como o imposto por Schulz resultaria em demissão. Mas a degradação gradual da autoridade editorial é outra marca deprimente de nossa era digital (…)

Nesse meio tempo, vale a pena considerar o que o desconvite de Remnick causou. Aqui vai minha lista:

Manteve o nome de Bannon no noticiário. Trransformou um intolerante em vítima de censura liberal. (…) Manteve os leitores da 'The New Yorker' trancados em sua costumeira câmara de eco. Reforçou a crença de que instituições veneráveis podem ser coagidas a submeter-se às demandas irascíveis dos linchadores da mídia social.

Da próxima vez que nós jornalistas exigirmos "coragem" de nossos políticos, vamos primeiro mostrar que sabemos o que a palavra significa e mostrar um pouco dela nós mesmos."

Visite meu site: andrebarcinski.com.br

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.