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Aretha Franklin: a “rainha do soul” foi a voz da afirmação feminina

André Barcinski

16/08/2018 15h23

Quando se fala em Aretha Franklin, a canção que as pessoas imediatamente lembram é "Respect".

De fato, é uma música emblemática e que capturou o espírito de sua época. Gravada no início de 1967, tornou-se uma espécie de hino dos movimentos pela igualdade dos direitos civis nos Estados Unidos. Aretha, é bom lembrar, tinha só 24 anos.

Mas ela não gravou só "Respect". Entre 1967 e 1972, Aretha Franklin lançou pelo menos cinco álbuns clássicos: "I Never Loved a Man the Way I Love You" (1967), "Lady Soul" (1968), "Aretha Now" (1968), "Spirit in the Dark" (1970) e "Young, Gifted and Black" (1972).

Aretha virou símbolo da luta contra o racismo na América. Ela fazia shows beneficentes para movimentos negros, arrecadava dinheiro para campanhas pelos direitos civis e chegou a se oferecer para pagar a fiança da ativista Angela Davis quanto esta foi presa, em 1970 (a fiança acabou negada).

Em 16 de fevereiro de 1968, em agradecimento à luta da cantora pela igualdade racial, o prefeito de Detroit, Jerome Cavanaugh, declarou a data "Dia de Aretha Franklin". Naquela noite, ao subir no palco diante de 12 mil pessoas para fazer um show, a cantora foi surpreendida ao receber uma homenagem de Martin Luther King. Menos de dois meses depois, Aretha cantaria no funeral de King, assassinado em Memphis, no Tennessee.

A despeito de todo esse lado politizado, é curioso ouvir os discos que Aretha lançou na virada dos anos 60 para os 70 e perceber que a cidadã Aretha Franklin era mais politizada que seus discos. Os álbuns costumavam ter uma ou duas canções de teor mais político, como "People Get Ready", de Curtis Mayfield, ou "Young, Gifted and Black", de Nina Simone, mas a maioria das canções tinha como tema a afirmação feminina. Eram letras românticas, mas cantadas sob a ótica de uma mulher forte e que não levava desaforo pra casa.

"Respect" é isso: cantada de outra maneira, poderia soar como o lamento de uma mulher amargurada que pede ao homem um pouco de respeito quando ele chega em casa. Na versão de Aretha, a coisa muda de figura: a interpretação é tão forte, tão vibrante, tão segura, que o ouvinte não tem dúvida de que o sujeito vai se arrepender se não respeitar essa mulher.

Até o fim da vida, Aretha Franklin foi uma artista independente. Não tinha agente e não tinha produtor. Em 2017, em um de seus últimos shows, fez questão de receber o cachê como fazia há mais de 50 anos: em dinheiro, minutos antes de subir ao palco. O empresário que marcou a apresentação entregou à cantora 50 mil dólares em cash, que Aretha prontamente enfiou no sutiã antes de cantar. O sujeito disse: "Acho que a senhora está precisando de um agente". Aretha respondeu: "Meu último agente foi meu marido, o que foi um duplo erro".

Aqui vai um texto que fiz ano passado, no 50º aniversário de "Respect":

Em 10 de março de 1967, a gravadora Atlantic lançava "I Never Loved a Man the Way I Love You". Era o 11º álbum de estúdio de uma cantora então prestes a completar 25 anos, chamada Aretha Franklin.

O disco marcava a estreia de Aretha na Atlantic depois de sua saída da gravadora Columbia, motivada pela insistência da Columbia em vender Aretha como uma cantora de jazz. Ela adorava jazz, mas queria gravar soul e rhythm'n'blues e lançar discos de maior vendagem. Aretha queria sucesso.

Um dos donos da Atlantic, Jerry Wexler, levou a cantora a Muscle Shoals, no Alabama, para gravar no estúdio FAME, gerenciado por um produtor e arranjador chamado Rick Hall. Wexler estava impressionado com o som forte e grooveado que Hall e sua banda de estúdio, o Swampers, havia conseguido em gravações com Etta James, Wilson Pickett e Otis Redding.

O Swampers teve várias formações, mas seu núcleo era formado por Roger Hawkins (bateria), Barry Beckett (teclados), David Hood (baixo), Pete Carr e Jimmy Johnson (guitarra) e Spooner Oldham (teclados). A banda era tão boa que artistas famosos faziam fila para contratar seus serviços. Um dia, Paul Simon ligou atrás daquela "banda negra" que fazia um som tão funkeado, e ficou surpreso ao descobrir que eram todos brancos.
Veja um trecho do ótimo documentário "Muscle Shoals" (com legendas automáticas em inglês), com um depoimento de Aretha e imagens dela gravando em Muscle Shoals.

Aretha chegou ao estúdio FAME e logo se enturmou com a banda, mas seu marido, Ted White, sujeito violento e explosivo, não gostou de vê-la gravando apenas com músicos brancos. White acabou discutindo com um saxofonista e exigiu que Wexler o demitisse, o que irritou Rick Hall. Depois da sessão, Hall foi ao hotel de Aretha e White tentar apaziguar os ânimos, mas acabou se envolvendo numa discussão violenta com White, que terminou com os dois trocando socos. Aretha e o marido foram embora no dia seguinte e nunca mais voltaram a Muscle Shoals. A sessão havia rendido apenas uma música, mas era sublime: a faixa-título, "I Never Loved a Man (The Way I Love You)".

De volta a Nova York, Aretha disse a Wexler que ficara impressionada com a qualidade e simplicidade da gravação que fizera no Alabama. Ela estava cansada dos arranjos orquestrais e complexos dos discos de jazz da Columbia, e queria manter as coisas simples. Wexler montou uma banda espetacular, que incluía os saxofonistas King Curtis e Charles Chalmers, além de alguns músicos de estúdio "importados" de Muscle Shoals, como o guitarrista Jimmy Johnson e o tecladista Spooner Oldham.

"I Never Loved a Man (The Way I Love You)" era um clássico da soul music, mas a canção que abria o disco conseguia ser ainda mais impactante: uma versão de "Respect", música composta e gravada em 1965 por Otis Redding.

É curioso comparar as duas versões e ver como algumas mudanças no arranjo e na forma de cantar podem fazer a mesma música ter significados distintos. Aretha não mudou nada na letra de Redding, apenas acrescentou o antológico refrão em que soletrava a palavra "Respect" ("respeito"), mas a força do arranjo e da interpretação de Aretha transformaram a canção. A versão original é bem mais "tranquila", e Redding parece fazer um apelo à mulher (ou à família) para que o respeitem "quando eu chegar em casa". Ouça:

Já a versão de Aretha é uma bomba atômica, uma canção explosiva que virou hino feminista e de afirmação do orgulho negro.

Quando ouviu a versão de Aretha, Otis Redding teria dito: "Perdi minha música… aquela menina a tirou de mim."

Um ótimo fim de semana a todos.

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.