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Eu queria ser capaz de comer o seu câncer

André Barcinski

02/04/2018 00h04


Maria é minha sogra, mãe de minha mulher e avó de meus filhos. É também a pessoa mais corajosa que já conheci.

Há três anos, Maria foi diagnosticada com câncer. Desde então, iniciou uma batalha contra o tumor.

Ao lado do marido, Paulo, Maria percorria uma hora de carro até o hospital, esperava numa maca por uma ou duas horas, e passava por uma sessão de quimioterapia, em que substâncias químicas eram bombeadas em seu corpo por três, quatro, cinco ou até seis horas.

O primeiro dia depois da quimioterapia, dizia Maria, não era tão ruim. O problema vinha umas 24 horas depois, quando os efeitos atacavam com tudo: dores de cabeça, fadiga, perda de apetite, enjôos, queda de cabelo, fraqueza.

Uma sessão de quimioterapia deve ser dolorosa demais (digo "deve" porque nunca fiz, e dor à distância é abstração). Os efeitos são tão devastadores que é necessário um período de duas a três semanas entre sessões. Agora, imagine passar por uma, duas, três, quatro, oito, quinze, vinte e duas, trinta e sete, quarenta e três, CINQUENTA E DUAS sessões dessas. Não é para qualquer um.

Durante esse tempo todo, Maria nunca fraquejou. Acreditava na ciência e na medicina. Seguindo conselhos médicos, fez dieta, ginástica e exercícios de relaxamento. Fez de tudo – tudo mesmo – para combater a doença e prolongar ao máximo seu tempo ao lado das pessoas que amava e que a amavam de volta.

Foi uma lição de vida acompanhar esses três anos e ver como uma pessoa aparentemente frágil se transformou numa amazona destemida. Tudo para passar mais alguns segundos com a família, para ver os netos e beijá-los uma vez mais, e mais e mais.

E se existe UMA coisa boa em passar por um suplício tão longo, é saber que as pessoas queridas tiveram tempo para confortá-la, para dizer a ela o quanto ela é amada e que a família que ela construiu com tanta paixão vai ficar bem, apesar das saudades.

Maria se foi na noite de domingo, 1º de abril. Suas últimas palavras foram: "Eu amo todos vocês".

Em homenagem a ela, deixo essa mensagem, escrita há exatos 70 anos por Carl Sigman e Herb Magidson, aqui na versão imortal dos Specials:

"Divirta-se. É mais tarde do que você imagina."

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.