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"Doutor Livingstone, eu presumo?": a maior aventura africana faz 145 anos

André Barcinski

04/11/2016 05h59

1872 stanley meets livingstone

O calendário de Henry Morton Stanley apontava o dia 10 de novembro de 1871. Naquela manhã, Stanley e sua expedição, carregando uma bandeira norte-americana, chegaram a Ujiji, uma vila com cerca de mil habitantes no leste da África, hoje território da Tanzânia.

Além do próprio Stanley, só havia um homem branco em Ujiji. Ele tinha 58 anos, mas aparentava 80. Era magérrimo, desdentado, com longos cabelos brancos e roupas quase em farrapos. Stanley se aproximou, estendendo a mão…

– Doutor Livingstone, eu presumo?

– Sim – respondeu Livingstone.

– Eu agradeço a Deus, doutor, o fato de ter tido permissão para vê-lo.

– Eu me sinto grato por estar aqui para recebê-lo.

Assim acabava a maior aventura africana. Durante 236 dias, Stanley havia percorrido 1560 quilômetros a pé pelas florestas da África, enfrentando leões, cobras, canibais e doenças. Tudo para achar David Livingstone, o grande explorador escocês, desaparecido do Ocidente há quase seis anos e que muitos davam por morto.
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O encontro de Livingstone e Stanley está completando 145 anos. Ou melhor, já completou: estudos indicaram que a data exata do encontro foi 27 de outubro de 1871. A confusão aconteceu porque Stanley passou vários dias desacordado devido às várias doenças que contraiu na expedição, como disenteria, malária e até a quase sempre fatal doença do sono, e isso acabou por confundir seu calendário.

Um dos melhores relatos sobre a expedição de Stanley em busca de Livingstone é o livro "No Coração da África", de Martin Dugard. Para quem gosta de histórias de aventuras e exploração, é difícil achar um livro mais empolgante.

livro dugardPara começar, os dois personagens principais são fora de série: David Livingstone (1813-1873) era considerado o maior explorador da África e um grande herói britânico. Foi um missionário humanista que lutou contra o tráfico de escravos e sumiu de circulação em janeiro de 1866, quando se embrenhou em regiões inexploradas da África para tentar solucionar um mistério que causava polêmica entre geógrafos e exploradores: onde ficava a nascente do rio Nilo?

Já Henry Morton Stanley (1841-1904) teve uma vida triste e dramática: filho de uma prostituta, nasceu no País de Gales – seu nome verdadeiro era John Rowlands – e aos cinco anos foi mandado para um desses orfanatos saídos diretamente de um livro de Charles Dickens, onde foi castigado e abusado sexualmente por mais de uma década. Aos 15, saiu do orfanato, perambulou pela Inglaterra, embarcou num navio e, dois anos depois, acabou nos Estados Unidos, onde lutou na Guerra de Secessão – primeiro pelos Confederados e, depois de passar um tempo na cadeia, pela União – virou repórter, foi preso por dois anos numa masmorra na Turquia e acabou trabalhando como correspondente internacional do jornal "The New York Herald", cobrindo conflitos na Etiópia, Espanha e China.

Mas o grande furo de reportagem da carreira de Stanley foi mesmo a descoberta de Livingstone. Embora houvesse relatos sobre um homem branco que comandava uma pequena expedição no coração da África, muitos acreditavam que Livingstone estivesse morto. Stanley achava que não, e convenceu o "The New York Herald" a bancar uma expedição para encontrá-lo.

O livro de Martin Dugard conta, em paralelo, as duas expedições – a de Livingstone em busca da nascente do Nilo, e a de Stanley em busca de Livingstone. As histórias envolvem ataques de canibais, leões famintos, aranhas venenosas e guerras entre tribos africanas.

Numa das passagens mais impressionantes, a expedição de Stanley explora uma região alagada pelas chuvas. Os homens caminham por dezenas de quilômetros com água na altura do peito, sendo atacados por cobras e sanguessugas, e alguns se afogam ao cair em pegadas de elefantes.

A notícia da descoberta de Livingstone correu o mundo e causou revolta na Inglaterra, onde muitos não aceitaram a humilhação de ter um de seus filhos mais ilustres resgatado pelo repórter de um jornal norte-americano. Para tristeza ainda maior dos ingleses, Livingstone nunca retornou à Grã-Bretanha: morreu em 1873, de disenteria e malária, numa região que hoje pertence à Zâmbia. Seu coração foi retirado pelos fiéis assistentes, Susi e Chuma, e enterrado aos pés de um imenso baobá.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.