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Nico: a heroína trágica foi muito mais que a musa do Velvet Underground

André Barcinski

29/08/2018 05h59


"Minha carreira começou de verdade depois do Velvet Underground", dizia Nico. Mas não adiantou: até o fim da vida, ela seria conhecida como a cantora do Velvet.

E tudo por culpa de três – apenas três – músicas que ele cantou em "Velvet Underground and Nico", álbum de estreia do grupo, em 1967: "Femme Fatale", "All Tomorrow's Parties" e "I'll Be Your Mirror".

Foi um disco tão revolucionário e influente que as três canções bastaram para eternizar Nico num papel do qual ela nunca conseguiria escapar: o de musa da desesperança. Nico era a loura fatal e olhos vidrados de heroína, que cantava com voz glacial os contos urbanos e sombrios escritos por Lou Reed.

Quando trabalhou com o Velvet, a alemã Christa Paffgen, ou Nico, já era conhecida no mundinho fashionista de Nova York e andava com a trupe de artistas e músicos que orbitava o pintor Andy Warhol (1928-1987). Foi Warhol que teve a ideia de botar Nico para cantar no disco do Velvet Underground, banda que ele apadrinhara.

Warhol entendia como ninguém o poder da imagem, e pressentiu que o rosto angelical de Nico faria um contraste chocante com a morbidez do Velvet, quarteto que se vestia de negro e fazia canções sobre heroína, prostitutas, gigolôs e masoquistas. Warhol estava certo.

Antes de chegar a Nova York, Nico teve uma carreira de modelo na Europa. Era tão conhecida que interpretou a si mesma em "La Dolce Vita" (1960), de Federico Fellini:

Em 1962, Nico teve um filho com o ator francês Alain Delon, mas Delon nunca reconheceu o menino, que se chamava Ari. "Eu era louca demais para criar um bebê, e o pai não o quis", disse Nico anos depois. Ela abandonou o menino, que foi criado pelos pais de Delon. Nico e Ari se reencontrariam anos depois, mas a mãe, viciada em heroína, acabou servindo de exemplo a Ari, que tornou-se um junkie e passou por inúmeras internações e tentativas de suicídio (Ari sobreviveu e hoje é um conhecido fotógrafo na França).

O disco do Velvet não fez sucesso comercial, mas virou um marco do vanguardismo no rock. E os romances de Nico com Brian Jones, Iggy Pop, Lou Reed, Leonard Cohen, Bob Dylan e Jim Morrison ajudaram a criar a fama de "femme fatale" do rock.

Não demorou para a gravadora Verve, casa do Velvet Underground, lançar um disco solo da cantora, "Chelsea Girl" (1967). O disco era excelente, com canções de Lou Reed e Jackson Browne, e tendo o Velvet como banda de apoio, mas Nico odiou o trabalho. Ela achava que estava sendo usada apenas como um rosto bonito, sem nenhum poder criativo e de decisão.

Nos 20 anos seguintes, até sua morte, em 1988, Nico nunca mais faria um disco com músicas de outros compositores. Ela lançaria cinco LPs de composições próprias, e pelo menos dois – "The Marble Index" (1968) e "Desertshore" (1970) – são obras-primas absolutas.

Veja Nico em 1971, cantando "Janitor of Luancy", canção do álbum "Desertshore":

São discos vanguardistas, de sonoridade esparsa e temas lúgubres. O primeiro, "The Marble Index", produzido por John Cale, do Velvet, é influenciado por Richard Wagner e música medieval alemã.

Quando ouviu as gravações, o dono da gravadora Elektra, Jac Holzman, disse que o disco não venderia nada, mas era uma jóia rara e precisava ser lançado. Holzman tinha razão: "The Marble Index" foi um dos LPs menos vendidos da história da Elektra.

A música de Nico não era para todos, mas alguns poucos ficaram marcados por ela. Perguntem a Patti Smith, Siouxsie Sioux, Morrissey, Nick Cave, Elliot Smith, Antony, Bjork, Trent Reznor, Mark E. Smith, Robert Smith, Peter Murphy, Andrew Eldritch e tantos outros que se inspiraram em Nico.

Seus discos solo influenciaram Joy Division, Cabaret Voltaire, Throbbing Gristle, a cena gótica de Siouxsie and the Banshees, Bauhaus e The Cure, e o trip-hop lúgubre de Massive Attack e Portishead.

Veja Nico e banda em 1982, numa versão matadora de "All Tomorrow's Parties", que poderia muito bem estar num disco de Siouxsie and the Banshees:

Amanhã estreia no Brasil "Nico, 1988", filme da italiana Susanna Nicchiarelli sobre os dois últimos anos da vida da cantora (Nico morreu em 1988 em Ibiza, na Espanha, depois de sofrer um ataque cardíaco durante um passeio de bicicleta). Leia aqui minha crítica do filme para a "Folha de S. Paulo".

"Nico, 1988" tem o mérito de iluminar uma fase pouco conhecida da carreira da cantora e mostrar que Nico foi muito mais do que simplesmente a musa do Velvet Underground.

Visite meu site: andrebarcinski.com.br

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.