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'Ouro de Tolo', de Raul Seixas: a obra-prima do pop brasileiro faz 45 anos

André Barcinski

28/05/2018 05h59


Em maio de 1973, chegou às lojas de discos brasileiras o compacto simples número 6069076, lançado pela gravadora Philips. O disco, assinado por Raul Seixas, trazia no lado 1 a canção "Ouro de Tolo", escrita pelo próprio Raul, e no lado 2, "A Hora do Trem Passar", parceria de Raul e Paulo Coelho.

Raul não era nenhum novato na música: como produtor da CBS, havia trabalhado em discos de Jerry Adriani, Leno e Lilian, Edy Star e Diana, entre outros, e lançara três LPs como intérprete: "Raulzito e os Panteras" (1967), "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez" (1971) e "Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock" (1973). Mas foi "Ouro de Tolo" que marcou sua chegada como um dos grandes nomes da música brasileira.

Se eu tivesse de escolher a maior música do pop-rock nacional, entre tantos clássicos gravados por Mutantes, Roberto Carlos, Jorge Ben, Walter Franco, Tim Maia, Secos e Molhados, Novos Baianos, Arnaldo Baptista e outros, ficaria com "Ouro de Tolo". Não consigo pensar em nenhuma canção mais ousada, moderna, engraçada e surpreendente.

OURO DE TOLO

Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego
Sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73

Eu devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso, abestalhado, que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir, e agora eu me pergunto: e daí?
Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar
E eu não posso ficar aí parado

Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo
Pra ir com a família no jardim zoológico dar pipocas aos macacos
Ah, mas que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado,
macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco

É você olhar no espelho, se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
E que só usa 10% de sua cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para nosso belo quadro social

Eu é que não me sento no trono de um apartamento
Com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador

A primeira coisa que impressiona em "Ouro de Tolo" é a contraposição da placidez da música com a violência do texto. A canção é uma baladinha doce, que Raul envenena com uma letra destruidora sobre a mediocridade dos sonhos do cidadão médio brasileiro.

Se hoje é modinha criticar a sociedade de consumo, lembre que ele escreveu a letra em 1973, em meio ao ufanismo do Milagre Econômico e do "Brasil Grande". Enquanto os brasileiros sonhavam em comprar carros e TVs, Raul dizia que tudo aquilo era besteira: o que ele ainda tinha a conquistar eram coisas GRANDES, não a pequenez de Corcéis 73 ou de um apê em Ipanema.

Outra qualidade do texto é seu humor. Só Raul teria peito de incluir, num tema tão sério, alusões a macacos, pipoca e tobogã. Nesse verso dos macacos, a cereja do bolo é "ir com a família" ao zoológico. Raul não precisaria ter incluído a família nessa história (note, na primeira frase, que o Senhor concedeu o domingo somente a Raul), mas fez questão de incluir o clã inteiro, numa clara ironia à instituição familiar.

"Ouro de Tolo" foi escrita em meio a um dos períodos mais violentos da ditadura militar no Brasil, e é surpreendente que tenham escapado dos censores as menções a "doutor, padre e policial". Outro verso impactante é o que enfileira as palavras "humano", "ridículo" e "limitado".

Cada vez que se relê a letra de "Ouro de Tolo", encontra-se nuance e mistério: que tal o verso "Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis"? Se Raul conseguiu tudo que quis, por que continuava insatisfeito? Que epifania o fez mudar de ideia? E as alusões autobiográficas ao período de dureza que passou no Rio ("fome na Cidade Maravilhosa"), depois de vir de Salvador para trabalhar em gravadora? É curioso também Raul dizer que teve "sucesso na vida como artista", quando nenhum de seus discos anteriores havia vendido nada. É Raul ironizando Raul.

Mas nada se compara à última parte da letra: além de uma das passagens mais bonitas da música brasileira (de toda a música brasileira, não só do pop-rock) – "Eu é que não me sento no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar" – há menção a um tema que interessava demais a Raul: a vida em outros planetas e a analogia do disco voador como sinônimo de fuga da realidade (ele retomaria o assunto na faixa "S.O.S.", de 1974). Além disso, há uma frase que sempre me intrigou: "cercas embandeiradas que separam quintais".

O que Raul quis dizer com "cercas embandeiradas"? Seriam as bandeiras metáforas para a posse de riquezas, no sentido de "o MEU terreno; o MEU carro, etc.", ou seriam bandeiras reais, ideológicas, que separariam os quintais de pessoas com posições antagônicas? O verso era pertinente no Brasil de 1973, e continua pertinente no Brasil de hoje.

Talvez esse seja o segredo da longevidade de "Ouro de Tolo": é uma canção política, mas que despreza a ideologia. O que interessava a Raul era a liberdade individual, o despertar de cada um, e não a simples crítica a governos ou situações. Raul enxergava à frente de conjunturas e propunha novos caminhos. Por isso, "Ouro de Tolo" não envelhece.

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.