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Por que você deveria se importar com a volta do ABBA ao batente

André Barcinski

07/05/2018 05h59


Em 27 de abril, o grupo sueco ABBA anunciou ter gravado as primeiras novas músicas desde sua separação, em 1982 (leia aqui). A notícia é importante não só porque o ABBA dominou as paradas do mundo inteiro entre meados dos anos 70 e início dos 80, mas porque o grupo nunca foi dos mais prolíficos. Em cerca de dez anos de carreira (1972-1982), o ABBA compôs perto de 100 canções. Para efeito de comparação, os Beatles, em oito anos juntos, fizeram mais de 200.

Houve um motivo para a produção tão diminuta do ABBA: o perfeccionismo obsessivo de Björn Ulvaeus e Benny Anderson, os compositores e produtores do grupo. Diferentemente da maioria dos músicos, Björn e Benny não escreviam um monte de canções e escolhiam as melhores para os discos, mas só trabalhavam em músicas que achavam que mereciam ser gravadas. Numa entrevista de 1999, Björn disse: "Durante o período de atividade do ABBA, nós compúnhamos 12 músicas por ano. E gravávamos tudo, então não existem sobras de estúdio. Muitos grupos gravam 30 canções para escolher 10, mas nós preferíamos nos concentrar no trabalho de composição até que ficássemos satisfeitos com as músicas."

Com o ABBA, Björn e Benny criaram uma verdadeira linha de montagem de hits, inspirada na estrutura de produção que Berry Gordy fizera na gravadora de soul music Motown, nos anos 60. Mas se Gordy organizou a Motown como uma verdadeira fábrica, com dezenas de profissionais – compositores, arranjadores, orquestradores, produtores, técnicos de estúdio, cantores e músicos – participando de reuniões diárias e trabalhando em discos uns dos outros, Björn e Benny faziam quase tudo sozinhos: compunham, tocavam, arranjavam, cantavam e produziam os próprios discos, além de criar as capas e até os vídeos promocionais do grupo, dirigidos pelo cineasta sueco Lasse Halström (de "Minha Vida de Cachorro"). Na hora de gravar, Björn e Benny contratavam experientes músicos de estúdio (o baixista Rutger Gunnarson e o baterista Ola Brunkert tocaram em todos os discos do ABBA) e contavam com a ajuda do engenheiro de som Michael Tretow. Eles também eram co-proprietários da própria gravadora, a Polar, junto com o empresário da banda, Stig Anderson.

ABBA: AGNETHA, BJÖRN, BENNY E ANNI-FRID

Se o mundo tomou conhecimento do ABBA em 1974, quando a banda venceu o concurso Eurovision com a música "Waterloo", o público sueco já os conhecia de outros Carnavais. Na verdade, o ABBA foi um supergrupo, formado por quatro músicos que já eram celebridades desde o fim dos anos 60: Björn Ulvaeus era integrante da banda The Hootenanny Singers; Benny Andersson tocava no The Hep Stars, chamados de "Beatles Suecos"; Anni-Frid Lygnstad cantava jazz em teatros aos 14 anos, e aos 17 liderava o grupo The Anni-Frid Four; e Agnetha Fältskog, aos 17 anos, havia composto e gravado o compacto mais vendido de 1967 na Suécia: "Jag Var Sa Kär".

Os casais: à esquerda, Anni-Frid e Benny; à direita. Björn e Agnetha

Anni-Frid era a única não-sueca do grupo: nasceu em 1945 em Ballangen, no norte da Noruega, mas aos dois anos de idade foi levada pela avó para a Suécia, para escapar da perseguição que sofria na Noruega. Anni-Frid era uma das cerca de 14 mil crianças norueguesas nascidas por meio do programa nazista Lebensborn. O programa, cujo nome significa "Fonte da Vida", encorajava nazistas a engravidar mulheres arianas em países ocupados pelo exército alemão, para criar uma legião de crianças "puras". O pai de Anni-Frid era um soldado nazista que abandonou a família e morreu quando o navio em que estava foi atingido por torpedos. A mãe de Anni-Frid morreu aos 21 anos, de uma doença nos rins. Depois da derrota nazista, em 1945, as crianças nascidas da Lebensborn foram escorraçadas na Noruega, e muitas enviadas para reformatórios, o que motivou a avó de Anni-Frid a levá-la para a Suécia (quase 30 anos depois, Anni-Frid descobriu que o pai não havia morrido, mas estava vivo e tinha outra família na Alemanha).

Voltando ao ABBA: Agnetha, Björn, Benny e Anni-Frid já eram famosos, e ficaram mais ainda depois que a imprensa sueca descobriu que Björn e Agnetha e Anni-Frid (ou Frida) e Benny formavam dois casais. Eles eram tão conhecidos que os primeiros compactos do agora quarteto foram creditados com seus primeiros nomes. Para facilitar, criaram um acrônimo: ABBA – Agnetha, Björn, Benny e Anni-Frid.

O SEGREDO DO SOM DO ABBA: SCHLAGER

De 1974 a 1982, o ABBA inundou rádios de todo o mundo com uma quantidade impressionante de hits: "Dancing Queen", "Chiquitita", "Voulez-Vous", "The Winner Takes It All", "Fernando", "Money, Money, Money", e minha favorita, "S.O.S.". As canções variavam de baladas lentas a músicas para dançar. Em comum, tinham uma capacidade incrível de grudar no ouvido à primeira audição.
Se existe um ingrediente que ajudou a moldar o som do ABBA, foi um estilo musical muito famoso na Europa do pós-Guerra: o Schlager.

Surgido em cabarés, teatros e restaurantes, o Schlager era um gênero de música festivo e gregário, feito para ser cantado em coro. As canções eram simples, com melodias primárias e letras ingênuas, que geralmente falavam de casos de amor e celebravam as coisas boas da vida. É curioso perceber que os mesmos adjetivos frequentemente associados à música Schlager – piegas, melodramática, simplória – foram, depois, usados por críticos para definir a música do ABBA.

Aqui, um típico Schlager, apresentado numa espécie de "Clube do Bolinha" alemão:

Antes de formar o ABBA, Björn e Benny haviam se apresentado em centenas de bailes e festas por toda a Escandinávia, e na grande maioria desses shows tocaram repertório Schlager. Eles aprenderam exatamente que tipo de música mexia com o público: quanto mais simples e direta, maior a chance de atrair o ouvinte.

Ao mesmo tempo, os dois eram músicos de gosto sofisticado (os compositores favoritos de Benny eram Bach e Brian Wilson), e cultuavam produtores dos anos 60 como Joe Meek, Phil Spector e George Martin, homens que revolucionaram as técnicas de gravação e usaram o estúdio como "instrumento".

O segredo do ABBA seria fazer uma música que fosse ao mesmo tempo simples e sofisticada; de impacto imediato no ouvinte, mas produzida com esmero. O modelo era Brian Wilson e as "Sinfonias Adolescentes para Deus" que ele havia composto para os Beach Boys: canções geniais e complexas, mas que soavam infantis e ingênuas.

A solução encontrada foi uma inédita fusão do brega e do sofisticado: as linhas melódicas e letras viriam diretamente do repertório Schlager que Benny e Björn conheciam tão bem, mas a música teria requintes de produção, arranjos e execução que rivalizariam com qualquer canção pop já feita.

EM BUSCA DO POP PERFEITO

O processo de criação, arranjos e gravação das músicas do ABBA era de um preciosismo absurdo. Benny e Björn gostavam tanto de ficar trancados compondo e gravando, que em 1978 abriram um estúdio próprio, o Polar, em Estocolmo. O lugar tinha os equipamentos mais modernos, incluindo sintetizadores e baterias eletrônicas de última geração.

Nada podia atrapalhar a linha de produção do grupo: quando Björn e Agnetha decidiram ter o segundo filho (a primeira filha, Linda, nascera em 1973), programaram o nascimento do menino para o início de dezembro de 1977, duas semanas depois do fim das gravações do quinto disco da banda, "ABBA: The Album" (o casal era tão metódico que não viajava no mesmo avião, para não deixar os filhos órfãos em caso de um acidente).

O trabalho no estúdio tinha precedência até às turnês do grupo, que foram pouquíssimas. Durante a carreira, o ABBA fez apenas três excursões, num total de 100 shows.

Mas o trabalho no estúdio compensava tudo. O ABBA conseguiu a proeza de criar um som derivativo e original. Suas músicas eram inspiradas em canções famosas de vários gêneros, mas tudo era embalado num verniz pop reluzente e inimitável. Quem ouve os discos do ABBA percebe o ecletismo das influências: há pop californiano à Fleetwood Mac ("Knowing Me, Knowing You"), música eletrônica à Krafterk ("Lay All Your Love on Me"), doo wop ("Super Trouper"), pop italiano ("I Have a Dream"), música eslava ("Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight)"), baladas à Elton John ("The Winner Takes It All"), música de cabaré ("Money, Money, Money"), hard rock ("Does Your Mother Know"), música mexicana ("Chiquitita"), música andina (a flauta que abre "Fernando"), e por aí vai.

Uma das canções mais famosas da banda, "Dancing Queen", inspirada por um clássico da discoteca, "Rock Your Baby", de George McRae, é prova da obsessão perfeccionista de Benny e Björn: depois de dias e noites enfurnados no estúdio tentando vários arranjos, os dois acharam que não haviam captado o clima festivo e despojado da canção de McRae, e decidiram usar um artifício de sucessos da era disco como "Jungle Boogie" (1973), de Kool and the Gang: começar a música com uma breve introdução instrumental, imediatamente seguida pelo refrão. O resultado foi uma obra-prima do pop dançante.

"Dancing Queen" mostra como as letras simplórias do ABBA, várias delas escritas num inglês infantil e imperfeito, tornaram as músicas ainda mais populares no mundo todo. Björn, principal letrista da banda, admite que criava rimas e versos mais preocupado em como as palavras soavam do que em seus significados. Em "Dancing Queen", a letra diz: "Night is young and the music's high". Em bom português, a frase seria traduzida por "A noite é uma criança e a música é doida (no sentido de "drogada", "chapada"). O que Björn quis dizer é que a música estava em volume alto, e portanto deveria ter usado a palavra "loud".

Esse método de composição pela sonoridade das palavras e não por seu significado tornou-se uma marca do pop sueco. Em 1992, o grupo Ace of Base fez um sucesso estrondoso com a canção "All That She Wants", em que a vocalista Linn Berggren cantava: "All that she wants / is another baby". A frase é estranha: tudo que ela quer é "outro bebê"? Por quê? Ela já tem uma criança? Na verdade, "baby" queria dizer "namorado".

Seis anos depois, o produtor sueco Max Martin compôs "Baby One More Time". O refrão dizia: "Hit me baby / one more time". A tradução correta é "Bata em mim mais uma vez". Martin ofereceu a música ao trio vocal feminino TLC, mas elas recusaram, com o argumento de que nunca pediriam para alguém espancá-las. Martin não entendeu nada. Para ele, "hit me" queria dizer "telefonar". A música, como sabemos, foi parar com Britney Spears, e liderou paradas em todo o mundo.

Foi o ABBA que ensinou a Ace of Base e Max Martin: não importa o que a letra diz, contanto que soe bem. Estão aí 380 milhões de discos para provar.

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.