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Pérolas de sabedoria de Mark E. Smith

André Barcinski

25/01/2018 09h49


Peço licença para voltar a Mark E. Smith.

O líder do The Fall morreu dia 24, de causas ainda não reveladas. Escrevi sobre ele aqui no blog. Mas acho pouco.

Claro que agora vai rolar o tal "efeito Belchior", e uma multidão que nunca ligou pro Fall vai subitamente descobrir que não pode viver sem ouvir "Hex Enduction Hour" ou "I am Kurious Oranj". Bom, se isso servir para arregimentar mais dois ou três membros para a seleta confraria de admiradores de Mark E. Smith, terá valido a pena (e para quem quiser saber mais sobre o estranho mundo de Mark, sugiro esse ótimo texto de Fernando Lopes).

Tenho que dizer que fiquei realmente deprimido pela morte de Smith. Ele tinha 60 anos e continuava a lançar um disco a cada 18 meses (foram cinco nos últimos oito anos). Alguns eram ótimos, outros nem tanto, mas isso não importava. O que importava era que todos traziam a marca única do cara.

Smith era uma personalidade rara na música ultracorporativa boazinha de hoje, um misantropo saudosista que personificava o extremo oposto da aura "inclusiva" da modernidade, com suas redes sociais onde todo mundo tem opiniões válidas e seus algoritmos que indicam músicas e filmes. Smith sabia que isso era uma armadilha, um engodo, propaganda disfarçada de "conteúdo".

Diferentemente do que disseram muitos obituários por aí, Mark E. Smith não era um polemista. Ele não se interessava em polêmicas, porque estava ocupado demais sendo Mark E. Smith e não ia perder tempo discutindo com quem quer que fosse. Rebeldia não é tentar fazer valer sua opinião, mas ligar o foda-se. Para sempre.

Em tributo a Mark E. Smith, selecionei alguns trechos de sua autobiografia, "Renegade – The Lives and Tales of Mark E. Smith", lançada em 2008. Aqui vão:

Sobre letras de canções:

"Não tenho o menor interesse em ouvir uma música sobre um cara que acabou de levar um fora da universitária que ele julgava ser o amor de sua vida. É patético. Os sujeitos hoje são um pouco abertos demais sobre esses assuntos, contando como vão ao doutor a cada cinco minutos para confessar suas depressões e distanciamentos. E na verdade eles não estão deprimidos, pelo menos não clinicamente deprimidos. É outra coisa, algo que impingiram a si mesmos. Acho que é porque eles têm tempo demais para pensar sobre si mesmos. Você não encontra caras assim na Rússia."

Sobre universidades:
"Diplomas costumam atrapalhar as pessoas. Não é saudável passar tanto tempo dentro de uma universidade, agindo como astros do rock em dias de semana. Eles ficam tão distanciados do mundo real que perdem a noção do que realmente importa. É quase uma prisão de luxo. E uma vez que eles são libertados, não prestam para nada a não ser fazer reuniões semanais com ex-colegas, conseguir empregos com ex-colegas, ou formar bandas péssimas."

Sobre arquitetura:
"Até 1996, o centro de Manchester tinha uma das melhores arquiteturas Vitorianas do mundo. Você podia entender História só de olhar para aqueles prédios. Eles eram obras-primas, lindas combinações de ciência e arte. Hoje, Manchester parece uma cidade de brinquedo. Não sei o que acontece com arquitetos. Prédios hoje não são símbolos de progresso, mas o resultado de muitas mentes regredindo à infância. Olhe para eles: imensos brinquedos glorificados."

Sobre a gravadora Factory, casa de Joy Division e New Order, e um de seus donos, Tony Wilson, que tentou – sem sucesso – assinar o Fall:
"A pergunta sobre a Factory é simples: para onde foi todo o dinheiro? Era um sistema de fábrica: você tinha de fazer o que lhe mandavam. Era baseado nos Situacionistas: terrorismo cultural, subvertendo o Capitalismo e os espaços públicos. Bom na teoria, mas muda de figura quando se tem um cara como Tony Wilson no comando. Na minha visão, não era muito diferente dos velhos dias na fábrica. Engels era dono de fábrica em Manchester e tinha meninas de 12 anos trabalhando para ele, provavelmente no mesmo lugar onde hoje fica o Hacienda (lendário clube e casa de shows da Factory)."

Sobre a cena punk:
"Nunca me alinhei à cena punk. Para mim, punk foi, e é, uma declaração efêmera. Por isso a grande maioria dos líderes do movimento não conseguiu lidar com a implosão da coisa toda, pareciam majores em estado de choque durante um bombardeio, congelados no tempo, repetindo indefinidamente seus outrora eficientes gritos de batalha. Nada errado com isso, acredito, mas sempre busquei algo com mais longevidade. Quando você lida com slogans, como The Clash e Sex Pistols, é difícil manter aquela merda interessante."

Em razão da morte de Mark E. Smith, adiantei o texto que normalmente é publicado sexta-feira. Um ótimo fim de semana a todos.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.