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A TV estéreo do Chacrinha

André Barcinski

20/09/2017 05h59


Semana passada, meu colega Maurício Stycer publicou um artigo certeiro reclamando da falta de uma cobertura mais crítica sobre o centenário de Chacrinha. Maurício tem razão: o Velho Guerreiro é um dos comunicadores mais importantes que o Brasil já conheceu, mas abusava de alguns dos piores hábitos de nossa indústria cultural. São notórios os casos de artistas que, para aparecer no programa de Chacrinha, tocavam de graça em shows de playback que ele promovia nos subúrbios do Rio.

Sobre o assunto, escrevi no livro "Pavões Misteriosos":

O jabá, ou jabaculê, era visto como uma coisa normal, parte do jogo. Porém, de vez em quando, o olho grande de alguém provocava atritos. Quando André Midani soube quanto Chacrinha estava exigindo para apresentar Baby Consuelo e Pepeu Gomes em seu programa, resolveu ir à imprensa e protestar. O resultado foi desastroso. "Eu disse para o André: pelo amor de Deus, não faça isso, vai acabar com a gente", lembra Mazzola, que trabalhava com Midani na Warner. "Dito e feito: quando cheguei à empresa, na segunda-feira, o departamento de divulgação inteiro estava me esperando: 'Mazzola, puta que pariu, as rádios cortaram todas as nossas músicas da programação!'. A gravadora levou uns quatro ou cinco anos pra se levantar." Mazzola trocou a Warner pela bmg-Ariola, mas seus problemas com o jabá não acabaram: "Aí, virou uma coisa totalmente institucionalizada. Quando não era jabá, era droga. Nas reuniões da Ariola, os divulgadores me diziam: 'O cara da rádio quer mulher, quer pó', e eu respondia: então faz um orçamento e me diz quanto você precisa, que eu quero a empresa em primeiro lugar. Já cheguei a pagar até pneu pra radialista. Uma vez, um cara disse que queria duas mulheres. Fiz a seleção na sede da gravadora e vieram várias mulheres para o sujeito escolher".

Roberto Menescal, diretor artístico da Polygram, lembra uma reunião com Chacrinha, em que falaram sobre um artista que a gravadora queria lançar. "O Chacrinha vira pra mim e diz: 'Tá bom, Menescal, eu ponho o menino no programa, mas eu quero uma tv estéreo!'. Eu falei: porra, Chacrinha, mas não tem transmissão de tv estéreo no Brasil, pra que você quer uma tv estéreo? Não vai te servir de nada. Mas ele insistiu: 'Não interessa, eu quero uma tv estéreo e pronto!'. Foi um trabalho do cacete arrumar uma televisão estéreo pro Chacrinha."

O filho de Chacrinha, Leleco Barbosa, disse à Folha de S.Paulo, em 2003, que o que havia não era "jabá", mas uma "troca de interesses" entre a gravadora e o programa do pai: "A gravadora queria botar [no programa] o artista tal. Se papai gostasse, botava. Mas, como produzia shows com artistas, chacretes e calouros, a 'caravana', fazia uma troca: 'Boto o artista [na tv], mas ele tem que ir ao show [cujos ingressos eram cobrados]. Era uma coisa mais que justa. Se o cara queria se lançar no programa, ia ao show em contrapartida".

Até hoje, não ficou clara a origem da expressão "jabá". Há quem diga que foi criada por um radialista nordestino que, ao receber grana de uma gravadora, teria dito: "Hoje o jabá das crianças tá garantido" [no Nordeste, jabá é como se chama a carne-seca ou charque].

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.