O homem que vendeu a pele como tela de pintura: quando a vida imita a literatura
Domingo o UOL publicou uma matéria sensacional (leia aqui) sobre o suíço Tim Steiner, que vendeu a pele das costas para que o pintor belga Wim Delvoye usasse como tela. A pintura/tatuagem foi vendida por meio milhão de reais para um colecionador de arte alemão, Rik Reinking. O contrato prevê que Steiner seja exibido de vez em quando em museus e que, ao morrer, a pele de suas costas seja enquadrada permanentemente e ocupe um lugar na coleção pessoal de Reinking.
A história é incrível, mas não é inédita. E os fãs do escritor galês Roald Dahl já a conhecem. Em 1952, Dahl publicou na revista "The New Yorker" o conto "Skin" ("Pele"), que antecipa em mais de 60 anos a história de Steiner.
Dahl (1916-1990) é mais conhecido como autor de clássicos juvenis como "Matilda", "O Fantástico Sr. Raposo" e "A Fantástica Fábrica de Chocolate", mas fez também 59 contos para adultos. Em 2015, escrevi sobre os contos de Dahl:
Estão entre as melhores histórias de suspense, terror e humor negro que já li. Se a sua praia é Edgar Allan Poe, Ambrose Bierce, Joseph Heller e os contos fantásticos de Maupassant e Monteiro Lobato, você vai se refestelar.
Um dos contos mais conhecidos, "Man from the South" (1948) foi adaptado várias vezes para TV e cinema, incluindo um episódio clássico da série "Alfred Hitchcock Presents" e o segmento de Quentin Tarantino no filme "Four Rooms": num hotel, um jovem encontra um milionário excêntrico. O ricaço propõe um desafio: se o rapaz conseguir acender um isqueiro dez vezes seguidas, ganha um Cadillac; se não conseguir, perde o dedo mindinho da mão esquerda. O conto tem dez páginas e é aterrorizante.
As histórias de Dahl são perversas, estranhas e carregadas de sarcasmo. Seus personagens são pessoas aparentemente comuns, mas que escondem segredos terríveis. Em "Galloping Foxley", um cavaleiro distinto reconhece, num vagão de trem, o sádico companheiro de escola que o torturava meio século antes; em "Skin", um mendigo é "disputado" por colecionadores de arte quando descobrem que ele tem tatuada nas costas uma obra de um famoso pintor.
Nem todas as histórias são violentas: em "Parson's Pleasures", um colecionador de móveis antigos descobre uma cadeira raríssima na casa de um caipira e tenta enganar o matuto, oferecendo uma ninharia pela peça. O final é dos mais surpreendentes e engraçados.
A vida de Dahl foi tão peculiar quanto seus contos. Ele foi piloto da força aérea britânica na Segunda Guerra e participou de combates na África e Grécia. Alguns anos depois do fim da guerra, o escritor C.S. Forester foi entrevistá-lo para uma reportagem sobre combate aéreo e pediu que Dahl escrevesse algumas linhas sobre suas experiências. Forester ficou tão impressionado pela qualidade do texto que pediu aos editores que o publicassem sem mudanças. Foi assim que Roald Dahl virou escritor.
Seus contos são narrados em linguagem econômica e sem floreios, mas absolutamente perfeitos em sua simplicidade. Não há uma vírgula a mais do que deveria e nenhum adjetivo em excesso ou fora de lugar. Escrever tão bem e de forma tão simples deve dar um trabalho medonho. Não é à toa que Dahl costumava levar seis meses para terminar um conto.
Fiz uma busca no site Estante Virtual e achei só um volume de contos de Roald Dahl disponível no Brasil: "Beijo", lançado em 2007 pela editora Barracuda (infelizmente, a editora não concretizou os planos de lançar outros três volumes).
"Beijo" traz onze histórias, incluindo algumas das melhores do autor, como "O Caminho para o Céu", sobre uma mulher atormentada pelo risco de chegar atrasada a qualquer compromisso; "William e Mary", sobre um cientista que convence um amigo, condenado à morte por uma doença fulminante, a doar seu cérebro para um experimento, e "Porcos", considerada por muitos a obra-prima de Dahl, uma trama macabra sobre um menino criado pela tia, uma vegetariana radical.
Em "Skin" (infelizmente não incluído na coletânea lançada no Brasil), Dahl conta a história de Drioli, um mendigo que anda pelas ruas de Paris, em 1946. Certa tarde, ele para em frente a uma galeria de arte onde está acontecendo a abertura de uma exposição. Na vitrine vê um quadro e reconhece a cena. Ela havia sido pintada, décadas antes, por um velho amigo, Chaim Soutine.
Drioli entra na galeria e fica maravilhado ao rever obras de Soutine. Os dois se conheceram em 1913, quando Soutine era um jovem artista e Drioli, um conhecido tatuador. Com a Primeira Guerra Mundial, os dois se separaram e nunca mais se viram. Drioli descobre que o amigo morrera em 1943 e se tornara um pintor celebrado.
O visual esfarrapado de Drioli atrai a atenção dos esnobes que tomam champanhe na galeria, e o dono do local tenta expulsá-lo. Enfurecido, Drioli arranca a camisa e exibe, para espanto de todos, suas costas, cobertas por uma paisagem de Soutine, tatuada durante uma noite regada a muitas garrafas de vinho.
A revelação de uma obra inédita de Soutine provoca um leilão na galeria: marchands e colecionadores oferecem fortunas a Drioli para exibi-lo em museus e hotéis de luxo. Um ricaço promete uma quantia exorbitante se Drioli aceitar vender a pele de suas costas, que seria emoldurada depois que ele morresse.
O final, a exemplo de vários contos de Roald Dahl, é dos mais perversos e macabros. Não vou contar para não estragar a surpresa. Só espero que o mesmo não aconteça com Tim Steiner.
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