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A escolinha do professor Sinatra

André Barcinski

21/11/2016 05h59

Acabei de ler um livro bem divertido, "Never Say No To a Rockstar", de Glenn Berger, famoso engenheiro de som nos anos 70 e 80. Berger, hoje um famoso psicoterapeuta, conta suas lembranças do trabalho no estúdio A&R, em Nova York, onde foi pupilo do tirânico produtor Phil Ramone e trabalhou com artistas como Bob Dylan, James Brown, Mick Jagger, Bette Midler, Paul Simon e Frank Sinatra.

A parte mais interessante do livro é a descrição dos meses que Berger passou mixando o som do filme "All That Jazz" para o cineasta e coreógrafo Bob Fosse, um artista tão genial quanto inseguro, que passava dias ouvindo uma frase do filme e exigindo mudanças na mixagem.

O livro traz várias histórias curiosas sobre o comportamento de artistas dentro do estúdio. E casos relatados por Berger mostram as diferenças entre dois astros da música pop: Paul Simon e Frank Sinatra.

O primeiro trabalho de Berger com Paul Simon foi o disco ao vivo "Paul Simon in Concert: Live Rhymin'", lançado em 1974. Berger revela que o disco teve partes inteiras regravadas no estúdio para cobrir erros de execução, especialmente erros na voz do próprio Simon.

Berger teve o trabalho de ouvir dezenas de horas de gravações de shows de Simon para escolher os melhores trechos. Depois, usando estilete, como era praxe na época, ele "montou" o melhor desempenho possível do cantor. Assim, o que o ouvinte escuta em uma faixa qualquer do disco pode ter trechos da mesma música cantada em vários shows diferentes.

Glenn Berger nos estúdios A&R, Nova York, anos 70

Glenn Berger nos estúdios A&R, Nova York, anos 70

Isso foi necessário porque, segundo Berger, Simon era um cantor de técnica rudimentar, que desafinava frequentemente e não conseguia modular a voz com regularidade, o que causava grandes diferenças de volume nas gravações. O processo de "construção" dos vocais do disco levou vários meses e foi um pesadelo, piorado pelos ataques de estrelismo de Simon.

No ano seguinte, 1975, Berger recebeu uma missão temerária: gravar uma faixa com Frank Sinatra. O velho "Blue Eyes" tinha quase 60 anos e era conhecido por produtores e engenheiros de som como um profissional de técnica impecável e nível de exigência estratosférico. Se Paul Simon já havia lhe dado tanto trabalho, imagine Sinatra?

A missão de Berger era gravar o vocal de Sinatra para a faixa "The Saddest Thing of All". A base musical da canção, com arranjos de Gordon Jenkins, já estava gravada. Sinatra, que sempre preferia gravar ao vivo, no meio da orquestra, dessa vez teria de escutar a orquestra em um fone de ouvido e cantar "por cima" da faixa pré-gravada.

Na manhã da sessão, Berger chegou ao estúdio bem mais cedo do que de costume. Queria deixar tudo impecável para receber Sinatra.

Sinatra e seu amado U47

Sinatra e seu amado U47

A primeira providência foi selecionar o microfone certo. E todo técnico de som que se preze sabia que o preferido de Sinatra era o Neumann U47, um microfone fabricado pela empresa alemã Georg Neumann GmbH entre 1949 e 1965.

Já em relação ao fone de ouvido, Berger não tinha certeza se Sinatra preferia usar um fone para dois ouvidos ou para um. Na dúvida, deixou os dois preparados. Depois diminuiu as luzes do estúdio para deixar o local mais aconchegante, colocou biombos especiais para "concentrar" o som da voz de Frank naquele estúdio imenso, colocou um banquinho confortável e um suporte para partituras, arrumou os cabos e testou várias vezes o "playback". Tudo para receber o maior cantor de todos os tempos.

No horário marcado, chegaram ao estúdio o produtor do disco de Sinatra, Don Costa, e um sujeito de cinco metros de altura, certamente o guarda-costas do cantor. O brutamontes disse: "O senhor Sinatra está prestes a chegar".

Poucos minutos depois, chegou Sinatra, impecavelmente vestido num terno cinza: "Good evening, men!". Sem perder tempo, o cantor foi para o estúdio. Berger perguntou que fone de ouvido ele queria usar. "Qualquer um, não importa", respondeu Sinatra, antes de escolher o fone de um ouvido. "Eu vou cantar uma vez para você ajustar os níveis de gravação", disse o cantor.

Reproduzo o texto de Berger:

Olhando para os medidores, todos no estúdio ficavam estarrecidos: Sinatra era capaz de aumentar seu volume e intensidade sem que a agulha mexesse. Como ele conseguia isso?

Com a maioria dos cantores, o engenheiro de som precisa ficar atento ao potenciômetro, o botão que regula o volume da gravação. Se o cantor cantasse muito alto, era necessário diminuir o volume para evitar a saturação da fita e a distorção. Se o cantor estivesse muito baixo, era preciso aumentar o sinal para que ele não ficasse baixo demais (…) mas com Sinatra, nada disso foi necessário.

Observei Sinatra para ver como ele fazia. Ouvindo sua própria voz no fone, ele cuidadosa e sutilmente se movia, ora em direção ao microfone nas partes mais sutis da canção, ora afastando-se dele nas partes mais altas. Dessa maneira, mesmo que a intensidade de sua performance aumentasse, o volume gravado permanecia dentro do limite estreito e ideal para o equipamento. Isso se chama "saber usar o microfone", e eu nunca vi ninguém usá-lo com tanta eficiência quanto Sinatra.

A versão de teste já parecia a Berger perfeita. Sinatra cantou a canção mais uma vez, agora "valendo". Quando terminou, perguntou a opinião de Don Costa. "Está perfeito, Frank". Sinatra tirou o fone de ouvido, foi para a sala de controle e pediu para ouvir a versão final, com sua voz superimposta ao som da orquestra. Escreve Berger:

Quando a música acabou, eu parei a fita. Frank balançou a cabeça e sorriu. A maioria dos cantores sofreria por horas, dias ou até meses até se darem por satisfeitos. Mas não Frank. Ele matou a canção em um take. O processo todo não levou mais de meia hora. Ele apertou minha mão, agradeceu e saiu, acompanhado por Don Costa e o grandalhão, e sumiu.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.