Topo

“Discos-Fantasmas”: a gambiarra que sustentou nossas gravadoras

André Barcinski

21/11/2018 05h59

Você pode ter um "disco-fantasma" em casa e não saber.

Faça o teste: vá à estante e procure aquele vinil velho, geralmente uma coletânea de sucessos, e tente encontrar os créditos dos músicos. Se não encontrar, é boa a chance de o LP ser um autêntico "fantasma", um disco de covers gravados por músicos anônimos.

O anonimato dos músicos não significa que eles não fossem famosos. Pelo contrário: no Brasil e no exterior, muitos "discos-fantasmas" foram gravados por músicos conhecidos.

Lá fora, nomes como Elton John, Isaac Hayes, Phil Lynott e Leon Russell, todos em início de carreira, gravaram LPs com versões de músicas de sucesso.

No Brasil, integrantes de bandas como The Fevers e Roupa Nova também faturavam como músicos de estúdio, sem receber créditos nos discos.

Quando uma gravadora queria lançar uma canção de algum artista de outro selo, a solução mais fácil e barata era gravar uma versão. Na segunda metade dos anos 1970, com o mercado do disco em expansão e cada vez mais competitivo, a indústria dos covers proliferou.

Não foram só as gravadoras menores que apelaram a eles, mas as multinacionais também. A Odeon lançou a série "Década Explosiva Romântica", em que o grupo The Fevers tocava – sem créditos, claro – versões de "Bridge Over Troubled Water" (Simon & Garfunkel), "My Sweet Lord" (George Harrison), "Skyline Pigeon" (Elton John) e "Hey Jude" (Beatles). A Polygram atacou com a série "Festa de Sucessos", com versões de "You Are the Sunshine of My Life" (Stevie Wonder), "Why Can't We Live Together" (Timmy Thomas) e "Oh, Girl" (The Chi-Lites).

Até a Som Livre, selo da Globo, passou anos faturando em cima de sucessos de outras gravadoras, como prova a série "Superparada – Sucessos Internacionais nas Paradas de Todo o Brasil", que trazia versões de hits como "Horse With No Name" (America), "You're a Lady" (Peter Skellern) e "The First Time I Saw Your Face" (Roberta Flack).

A qualidade das gravações variava enormemente. Algumas eram fiéis às originais, com bons arranjos e vocais em inglês correto; outras eram cantadas em puro "embromation". As séries "Premier Mundial" [sic] e "Superexplosão Mundial", da gravadora cid/Square, pareciam ter sido gravadas no fundo de uma caverna por cantores que estudaram inglês com o técnico Joel Santana.

Lançar um disco de covers era um excelente negócio: os músicos de estúdio recebiam cachês fixos, sem direitos autorais, e o custo de produção do álbum era baixíssimo.

Quando a Polydor lançou o LP com a trilha sonora do filme "Grease – Nos Tempos da Brilhantina" (1978), pelo menos três discos de covers chegaram às lojas brasileiras ao mesmo tempo. Um deles, lançado pela RGE, não trazia nenhuma informação sobre os músicos, a não ser um nome claramente inventado: The Fantastic Soundtrack Band.

O LP "Grease" gravado por The Fantastic Soundtrack Band. Quem?

Outro LP, do obscuro selo Aladdin, ligado à gravadora K-Tel, tinha um desenho tosco na capa, imitando John Travolta e Olivia Newton-John, e trazia versões produzidas pela gravadora alemã Countdown, especializada em covers. "Existiam muitas empresas na Europa e nos Estados Unidos, como a Countdown, a Odissey e a PPX, que só vendiam covers", conta Hélio Costa Manso, que foi executivo da RGE e Som Livre. "Você comprava um cover por 200 dólares. Elas vendiam as músicas com vocal ou sem vocal, caso você quisesse gravar os vocais em português e incluir na música. Era fantástico."

WANDO FEZ COVER DELE MESMO

Muitos grupos da época da Jovem Guarda se especializaram em covers. Integrantes dos Fevers e do Renato & Seus Blue Caps fundaram o Big Seven, banda instrumental que lançou a série de LPs "Os Sucessos num Super Embalo". Já Os Super Quentes, formado por membros dos Golden Boys, dos Fevers, do Trio Esperança e do Renato & Seus Blue Caps, lançou dez discos de versões em uma série chamada "Os Super Quentes e os Sucessos".

As gravadoras brasileiras não lançavam só covers em inglês, mas também em português. A partir do fim da década de 1960, houve uma enxurrada de lançamentos com versões de músicas brasileiras de sucesso, em que músicos de estúdio imitavam artistas famosos. Esses discos tinham títulos genéricos, como "O Melhor de 1979" ou "Sertanejo Bom Demais", e traziam na capa os nomes das músicas e dos artistas que as tinham gravado originalmente, sem dizer que eram versões.

O público também não percebia que se tratava de covers. Dono de um talento sobrenatural para imitar vozes, Raul Carezzato, cantor do grupo paulistano Os Carbonos (o nome veio justamente da qualidade de suas versões), gravou sucessos de Paulinho da Viola, Benito Di Paula, Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Ronnie Von e até Johnny Rivers; Dudu França imitou Sidney Magal; e o sertanejo Fabiano se especializou em copiar duplas como Tonico e Tinoco e Milionário e José Rico.

O caso mais curioso é o de Wando, que gravou um cover de si mesmo: "Ele precisava de uma grana e topou gravar suas próprias músicas para um disco de versões", revela Antonio Paladino, produtor que trabalhou na RGE e Som Livre.

ÁGUA-VIVA: UMA OBRA-PRIMA DO "DISCO-FANTASMA"

Em 4 de fevereiro de 1980, a TV Globo estreava a novela "Água Viva". Escrita por Gilberto Braga e Manoel Carlos e dirigida por Roberto Talma e Paulo Ubiratan, tinha no elenco Betty Faria, Reginaldo Faria, Raul Cortez, Lucélia Santos, Beatriz Segall, Tônia Carrero, José Lewgoy e Fábio Jr. A trilha sonora nacional, lançada pela Som Livre, trazia sucessos como "Menino do Rio" (Baby Consuelo), "Realce" (Gilberto Gil), "Grito de Alerta" (Maria Bethânia), "Desesperar, Jamais" (Simone), "Amor, meu Grande Amor" (Ângela Rô Rô), "Noites Cariocas" (Gal Costa), "Altos e Baixos" (Elis Regina) e "Vinte e Poucos Anos" (Fábio Jr.). A seleção de músicas havia sido feita por Lulu Santos, ou melhor, Lulu dos Santos, como dizia a contracapa do LP.

O disco com a trilha internacional também trazia uma forte seleção, marcada pela discoteca, gênero que ainda reinava no país. Misturava faixas dançantes – como "D.i.s.c.o." (Ottawan), "Love I Need" (Jimmy Cliff), "The Second Time Around" (Shalamar) e "Mandolay" (La Flavour) – a baladas românticas, como "Babe" (Styx), "Ships" (Barry Manilow), "Just Like You Do" (Carly Simon) e "Memories" (Bianchi). Imagens de uma vela de windsurfe e de praticantes do esporte ilustravam a capa e a contracapa do LP internacional, criadas por Hans Donner, o designer austríaco responsável pelo logotipo da TV Globo.

O disco da Som Livre

Na semana de lançamento do LP internacional de "Água Viva", um disco parecido chegou às lojas. Não era da Som Livre, mas da Continental. "Água Viva – Temas Internacionais da Novela" trazia na capa a foto de um sujeito praticando windsurfe e tinha um repertório idêntico ao do LP da Som Livre: Ottawan, Jimmy Cliff, Barry Manilow, Carly Simon… As versões, no entanto, não eram originais. Escondida no canto da capa, em fonte pequena, constava esta palavra: "covers". Não demorou muito para que o disco chamasse a atenção da Som Livre, e uma cópia chegou às mãos do então diretor da gravadora, Hélio Costa Manso. Ao constatar a qualidade das versões, ele não teve dúvidas: aquilo só podia ser obra dos Carbonos.

O disco "cover" da Continental

Hélio conhecia muito bem Os Carbonos. Dois anos antes, produzira, na própria Som Livre, um medley de músicas dos Bee Gees para a trilha da novela "Dancin' Days", cantado pelo grupo vocal Harmony Cats e tocado pelos Carbonos. Na época, muita gente ficou impressionada com a semelhança entre a gravação dos Carbonos e as músicas originais dos Bee Gees (cujos discos saíram no Brasil pela Polygram). Agora, a Som Livre experimentava o seu próprio veneno.

O "Água Viva" da Continental era tão bem gravado que começou a prejudicar a venda do LP da Som Livre. O público não distinguia a versão do original. Muita gente chegava à loja, pedia o "disco da novela" e saía de lá, feliz da vida, com a versão cover. A Som Livre reagiu e ameaçou excluir os artistas da Continental dos programas da Globo caso o disco não fosse retirado do mercado. Assustada, a Continental suspendeu as vendas de sua versão de "Água Viva". Hoje, o LP é uma raridade disputada no mercado de discos usados.

Os Carbonos: uma das melhores bandas brasileiras de "covers"

Quando mostrei a capa do LP "Água Viva – Temas Internacionais da Novela" para Beto Carezzato, baixista dos Carbonos, ele riu e disse: "É, acho que participamos desse estelionato!".

Visite meu site: andrebarcinski.com.br

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.