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Como Neymar vive seu “Show de Truman”, completamente descolado da realidade

André Barcinski

30/07/2018 15h29


Em 1998, o cineasta australiano Peter Weir lançava "O Show de Truman", um drama cômico sobre um sujeito comum, Truman Burbank (Jim Carrey), que descobre que sua vida é, na realidade, um programa televisivo que o acompanha desde o nascimento.

Vinte anos depois, o filme continua atual. E a prova é o menino Neymar.

Porque Neymar é Truman. A diferença é que, no filme, Truman se revolta com a intrusão em sua vida pessoal e decide escapar das câmeras. Já o menino Neymar continua vivendo a ilusão de que o planeta gira em sua órbita e que as relações humanas se resumem ao Instagram e a comerciais de TV.

Desde a noite de domingo, o Brasil só falou do anúncio de lâmina de barbear travestido de desabafo. A peça publicitária não é só triste e piegas, mas um registro contundente da total ruptura que uma megacelebridade pode ter com o mundo real.

O personagem Neymar parece viver num mundo paralelo, completamente descolado da realidade. A exemplo de Truman, leva a vida dentro de uma bolha criada por empresários e patrocinadores.

E é uma senhora bolha: o menino tem 101 milhões de seguidores no Instagram. Com tanta gente disposta a ouvi-lo sem contestar (Neymar só aceita comentários de amigos), ele nem precisa dar entrevistas, porque corre o risco de ser confrontado com alguma pergunta indesejável. Além do mais, que veículo de comunicação do planeta tem 101 milhões de usuários?

Vários momentos importantes de sua vida e carreira foram pontuados por comerciais de TV, como se interpretar uma peça publicitária fosse a única maneira de ele se relacionar com o mundo.

Meu colega do UOL, Thiago Rocha, lembrou dois acontecimentos importantes da trajetória de Neymar que inspiraram comerciais:

Em 2011, Neymar era de fato um menino, tinha 19 anos, porém visto como um jogador indomável, que fazia o que queria no Santos, após um ato de insubordinação ter gerado a demissão do técnico Dorival Júnior, em setembro de 2010. Entrava em campo, então, a publicidade, e o atacante virou garoto-propaganda da Nextel, uma empresa de telefonia. "Você me xingou quando eu errei, gritou quando eu não escutei", declama Neymar enquanto caminha em direção à câmera em uma praia do litoral de São Paulo até encontrar o pai, Neymar da Silva Santos, e lhe dar um abraço. O discurso é encerrado com o slogan da campanha.

Já em 2014, uma propaganda de TV da Claro, outra companhia de telecomunicações, exaltou Neymar como mártir após a lesão sofrida nas quartas de final da Copa, contra a Colômbia, em que Zuñiga aplicou uma joelhada desleal nas costas do atacante, tirando-o da competição. A peça adaptava uma crônica de Nelson Rodrigues para colocá-lo como herói nacional. "Perdemos o craque, mas temos algo que ninguém tem: o formidável povo brasileiro", diz parte do texto do comercial, exibido na reta final do Mundial de 2014, disputado em território brasileiro.

Agora Neymar usa a fama de cai-cai e presepeiro adquirida na Copa de 2018 para faturar com outro comercial.

O problema é que a realidade às vezes atrapalha o mundo virtual e perfeito de Neymar. Dessa vez o público não engoliu a confissão patrocinada, e o menino, novamente, virou piada.

Visite meu site: andrebarcinski.com.br

P.S.: Devido à celeuma em torno do comercial de Neytruman, adiantei o texto de quarta. O blog volta na sexta, 3 de agosto.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.