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O gênio triste que mudou a comédia na TV

André Barcinski

20/07/2018 05h59


A HBO exibe "Os Diários Zen de Garry Shandling", documentário em duas partes e mais de quatro horas de duração sobre o comediante norte-americano Garry Shandling (1949-2016).

O filme (veja horários aqui) foi dirigido por Judd Apatow ("O Virgem de 40 Anos", "Ligeiramente Grávidos"), e tem por base os diários que Shandling escreveu nos últimos 40 anos de vida.

Shandling não é tão conhecido no Brasil, mas nos Estados Unidos e Europa é considerado um inovador do humor televisivo, criador de dois programas importantes, "It's Garry Shandling's Show" (1986-1990) e "The Larry Sanders Show" (1992-1998).

No primeiro, Shandling interpretava ele mesmo, um comediante neurótico e inseguro que era o personagem principal de uma sitcom. O programa aboliu a chamada "quarta parede", e Shandling falava diretamente com o público, interagindo com a plateia e comentando situações da trama que se desenrolava no cenário atrás dele.

"Larry Sanders" foi ainda mais impactante: Shandling fez uma paródia aos "talk shows", em que interpretava Sanders, um famoso apresentador de programas de entrevistas. Atores e celebridades interpretavam a eles próprios, numa bizarra e surpreendente mistura de ficção e realidade. O programa é considerado um clássico da TV americana.

Judd Apatow conhecia Garry Shandling desde o início dos anos 90, quando Shandling contratou o novato de vinte e poucos anos para ajudá-lo no roteiro da apresentação da cerimônia do Grammy. Apatow virou roteirista de "The Larry Sanders Show" e tornou-se amigo de Shandling.

Depois que Shandling morreu de uma embolia pulmonar, em março de 2016, aos 66 anos, Apatow começou a entrevistar amigos, colegas e fãs, e usou os diários do amigo – jogados numa imensa caixa, que Shandling havia presenteado a Apatow anos antes – como base para contar os segredos da vida do comediante.

O resultado é o perfil de um homem extremamente triste e inseguro, um gênio que, jovem, sonhava com fama e fortuna, mas que ao ficar rico e famoso aos trinta e poucos anos, passou a almejar apenas agradar a si próprio. A comédia que Garry Shandling levou à TV era tão inovadora e diferente do que estava rolando na época que o público e a crítica demoraram a entender o que ele estava fazendo.

A lista de entrevistados dá uma ideia da importância de Shandling: Jim Carrey, Jay Leno, Jerry Seinfeld, Sarah Silverman, Sacha Baron Cohen, David Duchovny, James L. Brooks e muitos outros fazem fila para reverenciá-lo.

O documentário traz as primeiras aparições de Shandling nos palquinhos de clubes de comédia stand-up de Los Angeles, nos anos 70. Naquela época, o sonho dele era se apresentar no "Tonight Show", o todo-poderoso programa de entrevistas comandado por Johnny Carson na rede NBC.

Em março de 1981, Shandling finalmente fez sua estreia no programa de Carson, e foi tão brilhante que sua carreira mudou imediatamente. O comediante Bob Saget, amigo de Shandling, diz que foi abraçá-lo nos camarins após a apresentação, e Shandling estava chorando de tristeza: "Tudo que eu queria na vida era me apresentar no 'Tonight Show'. O que vou fazer agora?", disse Shandling.

Foi a primeira vez que os amigos conheceram uma das características mais marcantes da personalidade de Shandling: sua insatisfação eterna. Ele passava um tempão tentando atingir um objetivo, apenas para criar novos desafios assim que o atingisse.

Por anos, Shandling sonhou em tomar o lugar de Johnny Carson no "Tonight Show". Quando a oportunidade surgiu, em 1992, Shandling recusou porque estava escrevendo "Larry Sanders", e o emprego ficou com o comediante Jay Leno.

Shandling sofria de depressão, e os amigos temiam que ele se matasse. Depois que "Larry Sanders" terminou, em 1998, o comediante se afastou da TV. "Ele já havia revolucionado a comédia na TV duas vezes, então temia que um novo projeto não estivesse à altura de seus próprios objetivos", diz um dos entrevistados.

Nos últimos 15 anos de vida, Shandling fez trabalhos esporádicos no cinema ("Homem de Ferro 2"). Estava fora da TV desde 2006.

A preocupação dos amigos com a saúde física e mental de Garry Shandling era tão evidente que Jerry Seinfeld, ao entrevistá-lo para o programa "Comedians on Car Getting Coffee", batizou o episódio de "Que Bom Que Garry Shandling Ainda Está Vivo". O programa foi ao ar em janeiro de 2016. Shandling morreu dois meses depois.

No programa, comentando o suicídio de Robin Williams, Shandling diz: "Eu estava vendo o noticiário sobre a morte de Robin, e uma apresentadora do telejornal disse: 'Por que um homem de sucesso como Robin Williams se mataria? Ele tinha acabado de fazer um filme, estava finalizando duas séries, e tinha uma terceira série programada'. Ora, ela mesma já respondeu à pergunta!"

Um ótimo fim de semana a todos.

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.