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Anthony Bourdain, jornalista

André Barcinski

11/06/2018 05h59


Em 1999, Anthony Bourdain agitou o mundo da gastronomia com o livro "Cozinha Confidencial". Parte autobiografia, parte relato de bastidores do que acontece dentro da cozinha de restaurantes, o livro eternizou Bourdain no papel do Sid Vicious da culinária: um nova-iorquino falastrão, anárquico, com um senso de humor ácido e tolerância zero para esnobismo.

O livro levou Bourdain à TV, apresentando programas para Food Channel, Travel Channel e CNN. Bourdain tornou-se muito mais que um cronista de gastronomia: seu maior interesse não era falar sobre comida, mas sobre as pessoas por trás dela.

Os programas que ele apresentou – especialmente o último, "Parts Unknown", na CNN – usavam a culinária como ponto de partida para falar de cultura, política, história, geografia e outros assuntos.

Passei o fim de semana revendo vários desses programas. Vi um bonito tributo feito pela CNN ("Remembering Anthony Bourdain") em que os colegas falavam dele. Anderson Cooper chorou, Christiane Amanpour falou da coragem de Bourdain em discutir abertamente sua adição a heroína e cocaína, e Wolf Blitzer lembrou algumas reportagens feitas em zonas de conflito ou com personagens perseguidos por governos.

De fato, quando você assiste a Bourdain explorando os escombros da cidade de Trípoli, na Líbia, andando pelo que restou do palácio de Muammar al-Gaddafi e sendo expulso do lugar por uma milícia, você sabe que não está vendo um simples programa de culinária.

E que tal o episódio em que vai a Moscou e encontra um dos maiores críticos do regime de Vladimir Putin, Boris Nemtsov (que seria assassinado com quatro tiros nas costas nove meses depois)? Ou quando vai à Armênia entrevistar Serj Tankian, vocalista do grupo System of a Down? Ou o episódio em que visita Jerusalém e faz uma refeição com um casal formado por um israelense e uma palestina?

Em um episódio memorável, Bourdain encontrou Barack Obama num pé sujo em Hanói, onde comeram macarrão e beberam cerveja no gargalo. A aparência de despojamento era total, mas quem trabalha em TV sabe o trabalho que deu encenar um encontro daqueles com o homem mais poderoso do mundo (uma reportagem da revista "The New Yorker" informa que a equipe de Bourdain filma cerca de 80 horas para fazer cada episódio de 60 minutos, e uma produtora da CNN disse que o Serviço Secreto americano ficou enlouquecido porque não teve chance de provar a comida que seria servida a Obama).

Os programas de TV de Anthony Bourdain eram assim: extremamente bem produzidos para simular um ar de esculacho e despretensão.

O maior legado de Anthony Bourdain foi mostrar ao público a beleza de descobrir coisas novas, outras culturas e outros sabores. Como disse um colega da CNN, o apresentador Don Lemon: "Não importa se os entrevistados são de religiões ou posições ideológicas diferentes; quando eles estão em volta de uma mesa e comendo algo delicioso, a discussão fica imediatamente mais civilizada".

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Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.