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Medo, caos e um professor de capoeira: como o Portishead fez sua obra-prima

André Barcinski

16/04/2018 05h59


Há dez anos, em abril de 2008, o grupo britânico Portishead lançava seu terceiro – e até agora, último – LP: "Third".

O disco abria com uma enigmática narração em português: "Esteja alerta para a regra dos três. O que você dá retornará para você. Essa lição você tem que aprender. Você só ganha o que você merece".

A frase, gravada por Claudio Campos, um brasileiro professor de capoeira radicado em Bristol, cidade do Portishead, refere-se à "Lei Tríplice", ou "Lei dos Três", base da religião neopagã Wicca: "Tudo que fizeres voltará em triplo para ti".

Parece estranho, e é mesmo. Aliás, nada do que o Portishead faz é muito normal.

Quando lançou "Third", a banda estava sem gravar há mais de uma década. Depois do sucesso de "Dummy" (1994) e "Portishead" (1997), discos que praticamente inventaram o trip hop, o baterista e compositor Geoff Barrow sumiu de cena, dizendo-se esgotado física e artisticamente.

Barrow parecia ter chegado a um impasse: com o Portishead, havia criado um som novo, uma mistura de eletrônica, ambient e hip hop, mas, fiel a seus princípios experimentalistas e inovadores, não queria se repetir e tinha medo de soar redundante. Gravar outro disco como "Dummy" estava fora de questão.

O processo de criação de "Third" levou pelo menos seis anos. Trancada em seu estúdio em Bristol, a banda experimentou de tudo: músicos trocaram de instrumentos, testaram sintetizadores antigos e fizeram longas sessões de improvisos, onde a ordem era se arriscar no que não haviam feito. Foi um caos programado. Durante o processo, mergulharam nos sons repetitivos e mântricos do krautock de bandas alemãs como Neu! e Can, e nas trilhas sonoras dos filmes de terror de John Carpenter e Dario Argento.

O resultado foi "Third", um disco que abria mão da sonoridade pela qual o Portishead era conhecido e se aventurava em novos caminhos. Para mim é um dos discos mais impactantes e arrebatadores da última década. Amo a produção espartana e com os instrumentos soando "separados" na mixagem, como se cada integrante estivesse tocando uma música diferente. Nisso, Barrow claramente se inspirou nas produções de Martin Hannett para o Joy Division.

Depois de "Third", nunca mais consegui ouvir "Glory Box", "Numb", ou nenhuma música dos discos anteriores do Portishead, que passaram a soar como trilha sonora de lounge.

No fim de 2007, a banda participou do festival All Tomorrow's Parties, na Inglaterrra. Foi o primeiro show do Portishead em dez anos, e a primeira vez que a banda tocava músicas do novo trabalho. Veja aqui a versão de "We Carry On".

Um dos presentes àquele show foi Serge Pizzorno, guitarrista do grupo Kasabian. Veja o que ele disse sobre a experiência:

"Eu fui ao show e alguém me deu ketamina, que eu nunca havia experimentado. Foi insano. Eles tocaram 'Machine Gun' e eu tive um momento de: 'Isso é o futuro!'. Era tudo tão minimalista, com aquele incrível som de sintetizador de John Carpenter. Meus joelhos tinham virado geléia, havia luzes estroboscópicas. Eu pude vislumbrar um som, e precisava daquele álbum naquele minuto, mas tive de esperar seis meses, e quando chegou, ficou no repeat por um tempão. É uma aventura, e muito assustadora. Geoff Barrow é um produtor de extremo bom gosto, que sempre toma as decisões corretas. Ali posso ouvir Lalo Schifrin, Silver Apples, Hawkwind, coisas e atmosferas que amo. Tudo cria essa sensação e essa atmosfera: a edição angulosa, o uso de sintetizadores modulares, as afinações bizarras (…) E a voz de Beth Gibbons é a peça que torna tudo tão único. Ela é como um anjo-folk-druida. Você sente a dor naquilo, sua voz é uma arma, é puro mistério (…) O disco é uma obra de arte e uma afirmação de propósito, uma lição para você nunca se desviar de seu caminho (…) O disco me amedronta, e eu o amo por isso."

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

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