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Tiago Leifert acha que o esporte tem dono

André Barcinski

01/03/2018 05h59

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O apresentador de TV Tiago Leifert publicou uma coluna no site da revista "GQ" que está dando o que falar (leia aqui): sob o título "Evento esportivo não é lugar de manifestação política", Leifert explica por que, na visão dele, esporte e política não devem se misturar.

Diz o texto:

"Do ponto de vista do atleta: ele veste uma camisa que não é dele (que, aliás, ele largará por um salário melhor), uma camisa que representa torcedores que caem por todo o espectro político. A câmera e o microfone só estão apontados para aquele jogador por causa da camisa que ele está vestindo e de sua performance esportiva. Não acho justo ele hackear esse momento, pelo qual está sendo pago, para levar adiante causas pessoais. É para isso que existe a rede social: ali, o jogador faz o que quiser."

Entendo a posição de Tiago Leifert e, em alguns pontos, concordo com o texto (também acho ridícula a obrigatoriedade de execução de hinos antes de jogos). Por outro lado, discordo de algumas questões, mas isso se deve ao fato de nossas definições de "esporte" divergirem bastante.

Para Leifert, esporte é entretenimento. Nada mais lógico: ele trabalha para a TV Globo, emissora que tem no esporte um de seus grandes trunfos de audiência. No texto, compara um evento esportivo a um filme que você assiste na Netflix: "É um desligamento da realidade". No fundo, Leifert vê o esporte como um produto. "Esporte" seria sinônimo de "evento esportivo televisionado". É uma visão corporativa e mercantilista, mas tão válida quanto qualquer outra.

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Não é de hoje que a cobertura esportiva de nossas emissoras (e não só da Globo) vem deixando de lado a imparcialidade jornalística para se aproximar do entretenimento (sugiro ler essa matéria de meu colega Mauricio Stycer). A TV Globo gasta uma fortuna com direitos de transmissão de esporte e se acha no direito de embalá-lo e exibi-lo como bem entende.

Se os interesses da Globo fossem apenas o desenvolvimento do esporte e a qualidade dos campeonatos, não exibiria partidas de futebol em horário de boate e não defenderia cotas de TV tão desiguais para seus clubes prediletos, Corinthians e Flamengo. Isso configura um caso claro de interferência de interesses comerciais no equilíbrio das competições. Cadê o espírito esportivo?

Voltando a Leifert: o maior problema do texto, a meu ver, é generalizar essa visão corporativa do esporte como se fosse única, e não levar em conta que nem todo mundo pensa como ele.

Em sua definição mais básica, "esporte" é uma atividade física que exige destreza, e é disputada em competições individuais e coletivas. Para muitos, no entanto, o esporte representa bem mais que isso: na Espanha, o Espanyol e o Barcelona representam, de maneiras diferentes, o nacionalismo catalão; na Escócia, a rivalidade entre Celtic e Rangers traz à tona questões religiosas (Católicos vs. Protestantes) e geopolíticas (separatistas do Reino Unido vs. defensores da permanência escocesa no Reino Unido).

Um dos casos mais emblemáticos de politização do esporte foi a recusa do boxeador Muhammad Ali (então conhecido também por seu nome de batismo, Cassius Clay) em servir na Guerra do Vietnã. Em 1967, Ali era campeão do mundo dos pesos-pesados e um dos atletas mais famosos e bem pagos do planeta. Quando estourou a guerra no Vietnã, recusou-se a lutar: "Por que me pedem para botar um uniforme e viajar dez mil milhas para jogar bombas e balas em vietnamitas de pele marrom, quando os negros em Louisville são tratados como cães e têm negados direitos humanos básicos?". Esse gesto teve um efeito devastador na carreira e nas finanças de Ali: ele foi preso, banido do boxe por quase quatro anos, e perdeu milhões de dólares em prêmios e patrocínios.

Abril de 1967: Muhammad Ali é levado por um oficial das Forças Armadas depois de recusar o alistamento para a Guerra do Vietnã

Claro que não dá para comparar a realidade de 1967 com a de hoje. Mudou o esporte e mudou o mundo. Muhammad Ali não tinha obrigações contratuais com emissoras de TV ou marcas esportivas. Ele dizia o que lhe dava na telha, e pagava caro por isso. Por outro lado, o fato de o esporte ter se tornado uma indústria bilionária e corporativa não significa que sua única função seja preencher espaço na TV e atender a interesses comerciais. Ele tem, sim, importância social.

A visão de Tiago Leifert sobre o esporte não está certa ou errada. Ela simplesmente reflete uma visão muito em voga: a de que atletas são funcionários, agremiações esportivas são marcas, fãs de esporte são clientes, emissoras de TV são donas do jogo, e atitudes personalistas devem ser combatidas, porque não necessariamente refletem a visão dos "patrões". Resumindo: na nova ordem mundial do esporte, qualquer coisa que provoque ruptura ou discussão merece cartão vermelho.

O blog volta segunda. Um ótimo fim de semana a todos.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.