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Quando a discoteca “embranqueceu” – e dominou o mundo

André Barcinski

19/02/2018 05h59

Há no Youtube um clipe que não canso de ver. É a primeira apresentação do grupo de discoteca Boney M no programa alemão "Musikladen", em 1976.

Confira:

O clipe é de uma tosquice impressionante: os alemães batem papo na plateia (um barbudo masca chiclete!), enquanto as três cantoras fazem coreografias de robô cocainômano, e o vocalista Bobby Farrell dança como se tivesse acabado de cheirar um saco de farinha. Sem contar que sua jaqueta some e reaparece algumas vezes no meio da música.

Tosquices à parte, o clipe é fascinante, não só pela canção, com sua linha de baixo matadora e o vozeirão grave e lúgubre, mas porque simboliza uma das épocas mais interessantes da música pop: o período em que a discoteca descobriu o público branco.

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O Boney M foi apenas um de incontáveis grupos de discoteca inventados por um produtor. No caso, o alemão Frank Farian.

No fim de 1974, Farian gravou uma canção dançante chamada "Baby Do You Wanna Bump" (assim mesmo, uma pergunta sem ponto de interrogação). Lançado com o nome Boney M, o compacto fez sucesso em discotecas europeias, e Farian teve a ideia de montar um grupo de dançarinos e cantores para se apresentar ao vivo.

Ele contratou três lindas caribenhas – Maizie Williams, Marcia Barrett e Liz Mitchell – e um ex-marinheiro de Aruba, Bobby Farrel, uma espécie de clone de James Brown ainda mais estricnado, e montou o Boney M.

Em 1976, Farian lançou o primeiro LP da banda, "Take the Heat Off Me". Marcia e Liz cantaram, mas Maizie e Bobby eram tão desafinados que foram proibidos de abrir a boca (o próprio Farian fez os vocais de Bobby, incluindo a voz grave em "Daddy Cool").

Liz Mitchell e Marcia Barrett, as duas que cantavam no Boney M, no estúdio com Frank Farian

Mas o disco não foi o sucesso que Farian esperava. Até que um amigo, produtor do programa "Musikladen", convidou o grupo para se apresentar na TV.

Assistindo à apresentação do Boney M, uma coisa fica clara: ninguém tinha a menor ideia do que estava fazendo. Vamos lembrar: estávamos em 1976, a discoteca ainda não era um fenômeno mundial, e programas europeus como "Musikladen" costumavam apresentar artistas tocando ao vivo. O que fazer com quatro dançarinos dublando uma canção? O que fazer com a plateia? A produção do programa claramente não sabia como posicionar o público, e optou por uma solução bizarra: boa parte do auditório ficou sentada de costas para o Boney M (nos Estados Unidos, programas de TV especializados em música negra, como "Soul Train", haviam solucionado o problema transformando a plateia numa pista de dança).

No fim das contas, os telespectadores adoraram o grupo, e "Daddy Cool" virou um grande sucesso em discotecas europeias. Mas o maior hit de Frank Farian com o Boney M viria dois anos depois: uma versão eletrônica do clássico do reggae "Rivers of Babylon", que até hoje é um dos dez compactos mais vendidos na história do Reino Unido.

BRANCOS TAMBÉM DANÇAM!

Enquanto Frank Farian tentava emplacar o Boney M, vários produtores musicais e donos de gravadoras trabalhavam, cada um em seu canto, para solucionar um mistério que obcecava a indústria musical: como vender música dançante para o público branco?

Em meados da década de 1970, a discoteca já era um sucesso nos Estados Unidos, mas apenas entre negros e latinos. Artistas como Isaac Hayes, Earth Wind & Fire, Barry White, George McCrae, The Hues Corporation e vários nomes do mítico selo Philadelphia International, como mfsb, Harold Melvin & the Blue Notes e The O'Jays, já haviam gravado faixas disco: uma música feita para dançar, com vocais cheios de reverb e em falsete, arranjos orquestrais, uso frequente de ritmos latinos na percussão e um clima de celebração coletiva. A música era incrível, mas havia um problema: o público branco simplesmente não comprava os LPs.

Em abril de 1974, ocorreu um evento sísmico na indústria da música, que fez as gravadoras repensarem suas estratégias de venda. Você pode ver esse evento aqui…

Quando os suecos do ABBA venceram o concurso Eurovision com a faixa "Waterloo", as gravadoras salivaram: ali estava um grupo que fazia música para dançar (ok, não era exatamente discoteca, mas dava pro gasto), e facilmente vendável ao consumidor branco em todo o mundo.

O ABBA abriu as portas para o "embranquecimento" da discoteca, e produtores começaram a mudar o som feito para as pistas: no lugar do groove pesado, das batidas sincopadas e da variação rítmica de artistas como Kool & the Gang e Earth, Wind & Fire, surgiram canções mais lineares, com batidas mais simples e uma sonoridade clean e acessível.

A cantora Gloria Gaynor, uma das rainhas da discoteca, disse, em 1979, que o abandono da complexidade rítmica nas músicas do gênero aconteceu porque o público branco tinha dificuldade em acompanhar o ritmo nas pistas de dança: "Acho que era difícil para os brancos dançarem, porque a batida era sofisticada e difícil de acompanhar […]. Essa batida mais simples e clara, que é moda na discoteca atual, é bem mais fácil de dançar".

Depois do estouro do ABBA (que abraçaria a discoteca de vez com músicas como "Dancing Queen" e "Voulez-Vous"), surgiu uma nova geração de artistas disco, quase todos "inventados" por produtores europeus: o italiano Giorgio Moroder lançou Donna Summer; o francês Jacques Morali fez o Village People; outros dois franceses, Nicolas Skorsky e Jean Manuel de Scarano, lançaram o Santa Esmeralda, e Frank Farian fez sucesso com o grupo Eruption.

Mas a apoteose da discoteca viria em 1977, quando um gênio do showbiz chamado Robert Stigwood, um australiano que vivia desde os anos 50 na Inglaterra, teve a sacada de pegar uma banda pop velha, com mais de dez LPs na carreira, e ressuscitá-la como ídolos da discoteca. Stigwood produziu o filme "Os Embalos de Sábado à Noite" e transformou os Bee Gees em ícones das pistas.

O auge da discoteca durou pouco – de 1977 a 1979 – mas fez tanto sucesso que até artistas consagrados (e brancos!), como Rolling Stones ("Miss You", 1978), Elton John ("Victim of Love", 1979), Paul McCartney ("Goodnight Tonight", 1979), Queen ("Another One Bites the Dust", 1980), Rod Stewart ("Da Ya Think I'm Sexy?", 1978), e o grupo Kiss ("I Was Made for Lovin' You", 1979) se renderam às suas batidas.

Bandas veteranas do funk, como Earth, Wind & Fire e Kool and the Gang, mudaram de estilo e partiram para uma música mais comercial. O Kool and the Gang, que existia desde os anos 60 como uma banda instrumental, ganhou um cantor em 1979 e, produzido pelo brasileiro Eumir Deodato, lançou sua música de maior sucesso, "Celebration" (1980), hoje considerada um clássico da discoteca.

E Frank Farian? Bom, nosso velho amigo não perdeu o hábito de contratar músicos de estúdio para cantar nos discos enquanto botava rostinhos bonitos para dublar no palco. No fim dos anos 80, ele contratou dois modelos – Fab Morvan e Rob Pilatus – e montou o duo Milli Vanilli. Em 1989, o LP "Girl You Know It's True" foi um dos mais vendidos em todo o mundo, ficando incríveis oito semanas no topo da parada da "Billboard".

Tudo corria às mil maravilhas para Fab e Rob, mas seu mundo de faz de conta desabaria em 1990, quando, durante um show, o CD travou. O resultado foi outro clipe fabuloso da história da música pop:

Para os fãs, foi um escândalo descobrir que astros não cantavam. Para Frank Farian, que continua na ativa, aos 76 anos, era a coisa mais normal do mundo.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.