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Documentário sobre Jim Carrey é um dos grandes filmes do ano

André Barcinski

01/12/2017 05h59

"Jim & Andy: The Great Beyond", de Chris Smith, disponível na Netflix, funciona em tantos aspectos que é até difícil saber por onde começar a elogiá-lo.

Na superfície, é um documentário sobre as filmagens de "Man on the Moon" ("O Mundo de Andy"), uma cinebiografia do comediante norte-americano Andy Kaufman, filmada em 1999 por Milos Forman ("Amadeus", "Um Estranho no Ninho") e interpretada por Jim Carrey. Mas é muito mais: é um filme sobre os mistérios da criação artística, um prodígio de montagem e roteiro, e uma exploração das personalidades de dois artistas – Kaufman e Carrey – tão talentosos quanto atormentados. É também um dos melhores filmes do ano.

Escrevi sobre o filme na "Folha":

Andy Kaufman (1949-1984) ficou famoso na série de TV "Táxi", onde atuou de 1978 a 1983, mas logo se cansou do confinamento criativo da televisão e inventou uma maneira peculiar de fazer comédia, em que confrontava o público com "sketches" bizarros e metalingüísticos, que desafiavam os limites entre palco e realidade.

Kaufman criou um personagem chamado Tony Clifton, um cantor de boates misógino e desagradável, e frequentemente mandava Clifton fazer shows em seu lugar. Para confundir ainda mais, às vezes mandava seu parceiro criativo, o roteirista Bob Zmuda, interpretar Clifton em clubes de comédia e entrevistas. No auge da popularidade, Kaufman declarou que estava abandonando a comédia para se tornar lutador de "telecatch" profissional, e desafiou o campeão Jerry "The King" Lawler para um combate, transmitido em rede nacional de TV. Quando Kaufman morreu, em 1984, aos 35 anos, de câncer no pulmão, muitos, incluindo amigos próximos, acharam tratar-se de mais uma de suas brincadeiras.

Desde adolescente, Jim Carrey se identificou com a comédia surrealista de Kaufman e sua obsessão em subverter clichês cômicos. Quando ganhou o papel do comediante, em 1999, decidiu levar a extremos sua "imersão" no personagem (aliás, nos personagens, já que também interpretou Tony Clifton), e passou quase um ano vivendo na pele de Andy, mesmo fora do set.

Veja um clipe de 23 minutos comparando cenas de Kaufman e as mesmas interpretadas por Carrey:

Durante a filmagem de "O Mundo de Andy", a produtora Universal contratou a ex-namorada de Kaufman, a documentarista e artista plástica Lynne Margulies, e o roteirista e parceiro criativo de Kaufman, Bob Zmuda, para filmarem os bastidores. A dupla acompanhou Jim Carrey por meses, enquanto ele, "transformado" em Andy Kaufman e Tony Clifton, enlouquecia toda a equipe do filme. Carrey conta no documentário que as imagens de bastidores eram tão fortes que a Universal proibiu sua veiculação até dois ou três anos atrás, quando o estúdio liberou as imagens. Essas cenas formam a base de "Jim & Andy", junto a uma reveladora e emocionante entrevista com Jim Carrey.

JIM CARREY, MONSTRUOSO

Ver Jim Carrey encarnando Andy Kaufman e Tony Clifton, até nos bastidores das filmagens, é uma experiência simultaneamente fascinante e assustadora. Fascinante porque o talento mimético do sujeito beira o surreal, e assustadora porque o próprio Carrey diz que se sente melhor na pele de outros: "Depois de um ano fazendo Andy, tive de voltar a ser Jim, e entrei em depressão profunda", diz.

Que Jim Carrey não tenha sido sequer indicado ao Oscar de melhor ator em 1999 por "O Show de Truman" e no ano seguinte por "O Mundo de Andy" é um desses absurdos que ninguém consegue explicar. Desconfio que tenha sido por puro preconceito contra um ator de comédias "pastelão" como "Débi & Lóide" e "Ace Ventura". Carrey perdeu o Oscar, mas não perdeu a piada, e fez esse discurso antológico na premiação de 1999 (vencida pelo insuportável Roberto Benigni por "A Vida é Bela":

Sou fã de carteirinha de Jim Carrey, muito mais do que de seus filmes. Acho o sujeito um cômico fenomenal. Sua capacidade de prender a atenção de um auditório é impressionante. Veja essa apresentação – igualmente antológica – de um prêmio para Clint Eastwood…

E meu momento favorito de Carrey: os seis minutos em que ele domina totalmente uma plateia formada por megacelebridades hollywoodianas, num tributo a Meryl Streep:


Um ótimo fim de semana a todos.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.