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Meu novo livro: "Marcelo Nova - O Galope do Tempo"

André Barcinski

22/11/2017 05h59

Convite aos leitores do blog: segunda-feira, 27 de novembro, a partir das 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2703, São Paulo), acontece o lançamento de meu novo livro, "Marcelo Nova – O Galope do Tempo" (Editora Benvirá). Às 19h, participo de um bate-papo com Marcelo, seguido de sessão de autógrafos, a partir de 20h.

"O Galope do Tempo" é um livro de memórias de Marcelo Nova, narrado em forma de entrevistas. Por cerca de três anos, Marcelo e eu conversamos sobre sua vida, carreira e ideias.

Sempre admirei Marcelo e sua banda, o Camisa de Vênus, que considero uma das melhores bandas brasileiras dos anos 80. Também gosto muito de sua carreira solo (o título do livro, "O Galope do Tempo", é o nome do disco que muitos fãs consideram o melhor que ele já lançou).

No livro, Marcelo conta histórias inéditas sobre sua infância, adolescência, e o início do Camisa. Também relata encontros com gente como Raul Seixas, Eric Burdon, Chuck Berry, Genival Lacerda e Roy Cicala, e discorre longamente sobre seus artistas favoritos: Dylan, Leonard Cohen, Hendrix, Rory Gallagher, Marianne Faithfull, Howlin' Wolf, e muitos outros.

Separei um trecho em que Marcelo fala sobre a cena do ácido lisérgico na Bahia, no fim dos anos 60. É um assunto interessante e sobre o qual eu nada sabia. Espero que gostem…

Então o Camisa de Vênus entrou na sua vida aos 30 anos. Mas e as drogas?
Ah, isso foi bem antes. Comecei a fumar maconha com 17 anos e tomei meu primeiro ácido com 18. Era muito fácil achar ácido em Salvador no fim dos anos 1960. Embaixo do meu apartamento moravam dois irmãos, o mais moço era o Roberto e o mais velho se chamava Paulo Bom Cabelo (risos). Ele era louro, e o fio do cabelo dele era tão liso, tão liso, que ele jogava o cabelo pro lado, o cabelo parecia uma máquina, ia e vinha, e acabava sempre no mesmo lugar. E numa terra onde 80% da população é negra, ele virou Paulo Bom Cabelo. Ele era uns cinco anos mais velho que eu. Ele sabia que eu fumava, e um belo dia chegou para mim e disse: "Marcelo, tenho um negócio pra você, um negócio misterioso pra caralho… Chama LSD". Eu perguntei imediatamente: "Onde está? Eu quero, agora!". Àquela altura eu já ouvia "Lucy in the Sky with Diamonds" e todas aquelas coisas de Beatles e Stones, lia Timothy Leary, essas coisas. Uma vez li uma entrevista na revista Fatos e Fotos em que Timothy Leary dizia que o LSD era o futuro da humanidade. E eu pensava: "Porra, o cara descobrindo o futuro da humanidade e eu aqui nesta merda, tomando água de coco! O futuro da humanidade é LSD e eu tomando água de coco na praia que nem um bunda mole!" (risos).

E você tomou o ácido? Como era?
Bom Cabelo disse que tinha conseguido o ácido com uns gringos no Porto da Barra. O Porto da Barra era o lugar de encontro da malocada toda. Se você quisesse encontrar todos os malucos de Salvador, era só ir lá. E descobri que o cara que vendeu pra ele era roadie do Jefferson Airplane.

Sério? E como esse cara foi parar em Salvador?
Alguns anos antes, Mick Jagger, Anita Pallenberg, Marianne Faithfull e Keith Richards tinham ido para Arembepe. Quando voltaram, começaram a dizer que aquilo era um paraíso pra tomar droga, e isso atraiu malucos do mundo todo. Esse roadie do Jefferson Airplane veio pro Brasil e trouxe uns 500 ácidos pra vender e custear umas férias em Arembepe. Foi dele que comprei meu primeiro ácido. Era um purple haze, e foi um negócio de louco. Naquela época o ácido era puro, não era malhado com anfetamina e outras coisas mais que você nem sabe o que é. Quem já tomou ácido lisérgico sabe que há uma dificuldade enorme no transpor da experiência sensitiva para o campo das palavras. Sua descrição tende a ficar até constrangedora, porque é uma experiência alucinógena sobre a qual você não tem controle e as imagens se sucedem a mil por hora, e a velocidade com que você elabora pensamentos é inacreditavelmente superior à do seu cérebro funcionando numa velocidade normal. Mas havia, em um garoto, uma busca pelo desconhecido, um desejo de ir adiante, de sair daquele mundo que me incomodava, que me cerceava e como qual eu não tinha nenhuma afinidade. Eu me sentia absolutamente distante do barquinho, do solzinho, da praia, da rede, da preguiça baiana, do pôr do sol, entende?

Da cordialidade também?
Olha, existe uma confusão aí: não é que o baiano seja cordial, o baiano confunde cordialidade com intimidade. O cara mal te conhece e já está te convidando pra dormir na casa dele? O que vem depois? Dar a mulher também? Isso não é cordialidade, é uma intimidade que não se justifica sob nenhum aspecto. Eu não quero que ninguém saia da cama pra dar a cama pra mim, entendeu? Nenhum hábito baiano, nenhum, nada da cultura baiana me interessava.

O ácido abriu sua cabeça para muita coisa?
Quando a viagem acabava, que era coisa de 17, 18, 20 horas fora do planeta, voltava em mim uma espécie de introspecção, mas ao mesmo tempo havia um lado hedonista da existência, um prazer que você sabia e sentia que não era pra qualquer um, você fazia parte mesmo de uma elite. Quando eu voltava, eu só queria ler. O ácido me estimulou a leitura. Eu comecei a ler Marcel Proust, comecei a me interessar mais por literatura…

E os beats?
Não, os beats eu fui ler depois. Eu lia aquelas coisas mais viajandonas, Hermann Hesse, Paul Otlet, depois comecei a ampliar e ler de tudo: Hemingway, Oscar Wilde, Joyce, havia uma sede de saber o que estava acontecendo, e depois que entrei nesse tipo de viagem, literalmente falando, cruzei totalmente os horizontes da cidade provinciana em que eu morava. Eu não estava mais lá. Quer dizer, meu corpo estava, mas minha cabeça estava em outro mundo. Eu não ouvia música baiana, não lia leitores baianos, não socializava em eventos baianos… Pra não dizer que nada me interessava na Bahia, eu torcia pro Esporte Clube Bahia (risos), mas, àquela altura, até de ir ao estádio eu parei, me desinteressei completamente, porque antes eu ia toda semana com meu pai. A partir dali, tudo ficou pra trás, o mundo em que eu vivia ficou pra trás, eu já não tinha nenhum interesse nele. Nesse período, aos 20, 21 anos, eu era um vagabundo, não fazia nada a não ser me drogar e ouvir música.

Voltando ao ácido, então: por quanto tempo você tomou ácido?
Uns quatro anos, de 1969 a dezembro de 1972. Eu tomava um a dois ácidos por semana. O último que tomei foi em dezembro de 1972.

E continuou comprando do roadie do Jefferson Airplane?
Àquela altura, Salvador era um polo turístico, e havia muita gente vendendo. Uma vez eu comprei 20 ácidos de um italiano que parecia Alvin Lee, do Ten Years After. Eu até chamava ele de Alvin Lee (risos). Havia também um personagem interessantíssimo chamado Diogo. Ele tinha uma Variant azul, era de Vitória da Conquista e casou com uma mulher que tinha dinheiro. Então abriu uma livraria em Salvador e, no fundo da livraria, plantava maconha. Ele vendia maconha para os amigos. Você chegava na livraria e era muito engraçado, porque havia cadernos escolares, livros e tal, e ele atrás do balcão, aí você dizia: "Ô, velho, me dá cem gramas", e ele sumia nos fundos e voltava com um pacotinho embalado no papel timbrado da loja (risos). Diogo tinha o organismo mais resistente a drogas que já vi até hoje. Ele tomava ácido e ia pra batizado de sobrinho. Nunca vi um troço daqueles. Fui testemunha porque tomamos várias vezes juntos. Ele era um caipirão que não tinha noção de nada, caiu de cabeça em maconha e LSD sem saber de nada. Eu que apresentei o rock 'n' roll para ele. Ele dizia: "Ô, Marcelo, eu gosto muito daquela banda Black Sabadá, grava uns cassetes do Black Sabadá pra mim!". Ele não tinha nenhuma referência cultural, não tinha parâmetro de nada. Diogo era uns 12 anos mais velho que eu, talvez até mais. Quando o conheci, em 1972, eu tinha 21 e ele, uns 34 ou mais. Diogo pegava um garrafão de vinho, jogava sete ou oito ácidos dentro, levava o vinho para todo lugar e dividia com os amigos.

Sem avisar?
Claro, a diversão era ver todo mundo se esborrachando. Um belo dia, nós fomos pra Arembepe: eu, ele, a mulher dele, uns cinco primos dele, a tia, gente que não tinha a menor ideia de que ele tomava ácido, foi todo mundo pra Arembepe ver a lua, as estrelas e tal. Diogo tinha um pastor alemão chamado Killer, gigantesco, preto, o maior tomador de ácido. Todo dia o Diogo dava um ácido pro pastor alemão, o cachorro era completamente despirocado. Foi a gangue toda pra Arembepe, as pessoas mais díspares, nada batendo com nada, gente com interesses, hábitos, culturas totalmente distintas e diversas. Chegando em Arembepe, Diogo me tira uma garrafa: "Marcelão, olha aqui, eu trouxe um vinho chinês", e eu disse: "Diogo, você tá brincando que vai fazer isso?". "Ah, vou, você acha que eu vou aturar esses caretas a noite toda?" (risos). Meu irmão, de repente o sol se pôs e começou a chegar a noite. Veio passando um pescador velho, com dois filhos pequenininhos, e de repente eu vejo Killer, o pastor alemão, correr numa velocidade estonteante em direção a eles. O cachorro deu uma cabeçada em um dos moleques, que devia ter uns dois anos, e foi tão forte a porrada que o moleque caiu de cara na areia. O pescador enlouqueceu, pensando que ele ia dilacerar o menino, mas o cachorro começou a rolar o menino com a cabeça como se fosse uma bola, jogando pra cima e pra baixo com o focinho.

Tipo uma foca?

É, como se fosse uma foca, e o pobre do pescador querendo tirar o bicho de perto do moleque. Aí chegou o Diogo e controlou a situação. Pensei: "Seis horas da tarde, pastor alemão brincando de jogar bola com criança, e isso é só o começo da noite!" Aí o Diogo reuniu todo mundo, pegou a garrafa e disse: "Olha, eu trouxe um vinho importado da China que é maravilhoso, vocês nunca tomaram um negócio desses", e começou a servir aquilo indiscriminadamente. As pessoas tomavam um copo e pediam mais: "Hum, que bom isso, me dá mais um pouco?". Tinha um primo dele chamado Gordo Luna, que tinha um Corcel amarelo. De repente, o Gordo Luna dirigiu-se ao porta-malas do Corcel, abriu, tirou de dentro uma garrafa família de Coca-Cola, que na época era novidade, arrancou a tampa com os dentes e virou a garrafa sem parar, glub glub glub glub glub, e eu vendo aquele líquido preto descendo, glub glub glub glub, e o puto tomou a garrafa inteira de um gole só! Quando acabou, ele botou a garrafa de volta no porta-malas, fechou a tampa, olhou em volta, e estava todo mundo magnetizado pela cena. Ele olhou pra um lado, olhou pro outro, estendeu a mão com o polegar pra cima, deu um arroto monstruoso, que ecoou na noite, e depois gritou: "Podes crê, amizade!". Foi aí que eu percebi que a situação estava completamente fora de controle.

Só aí?
Bom, daí pra frente as coisas só pioraram. Dois dos primos do Diogo se chamavam Nivaldo e Carivaldo, pareciam personagens de desenho animado, Nivaldo e Carivaldo. Os dois estavam encostados num coqueiro, cada um de um lado, e um olhava pro outro e falava assim: "Moço, olha o céu, moço, moço, que coisa linda, óia!". É que era muita estrela no céu, porque você fica com a visão totalmente adulterada pela dietilamida do ácido lisérgico. Aí o Diogo, que tinha uma resistência inacreditável a qualquer tipo de droga, me dizia: "Vem pra cá, filho da puta, fica perto da fogueira, ou você vai sair todo mordido de pernilongo". E as loucuras foram se sucedendo: uma hora, a tia do Diogo me agarrou pelo braço e disse: "Meu filho, eu estava no meu enterro e não tinha um parente que estivesse chorando. Tá vendo todos eles aqui? São todos uns falsos, não tinha um puto chorando no meu enterro!". Aí um dos primos, não lembro se Nivaldo ou Carivaldo, namorava com uma prima, mas era segredo, e eles foram trepar atrás de uns arbustos, dando a maior bandeira, na frente da família toda. De repente, na madrugada, todo mundo completamente alucinado, surgem dois faróis à distância, e todo mundo ficou paranoico, achando que era a polícia. Eu montei no meu Buggy e disse: "Se for a polícia eu saio aqui pelas dunas mesmo, não vai ter polícia que me pegue!". Foi aquela tensão, os faróis se aproximando cada vez mais, cada vez mais, um silêncio sepulcral. Diogo correu até o carro, pegou uma paranga de maconha gigantesca e escondeu o bagulho embaixo do pneu, e aquela merda de farol se aproximando, se aproximando. Aí de repente parou, bem pertinho, você ouvia o barulho do motor do carro desligando e só os faróis acesos. Estava um silêncio, velho, ninguém dava um pio. Aí abre a porta, e você vê um vulto saindo de dentro, e o cara andando na direção da fogueira, na nossa direção. Eu já estava me imaginando sendo fuzilado pela polícia, quando chega um hippie perto da fogueira, levanta os braços e grita: "Diogo, é você, seu filho da puta?" E saem oito pessoas de dentro do carro, todos hippies de Pernambuco, hippie que fala "minha tia, eu ti disse, oxente! Diogo, Diogo, que loucura!" E Diogo gastou o resto do vinho chinês com a turma. Quando o dia amanheceu, velho, tinham mais de 30 pessoas, incluindo gente da vila, completamente alucinadas.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.