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Artistas falsos, sucessos inventados: o mundo misterioso do Spotify

André Barcinski

02/08/2017 05h59


Charles Bolt é um astro da música. "Far and Beyond", uma bonita canção instrumental que ele toca ao piano, foi ouvida quase 20 milhões de vezes no Spotify.

Apesar da fama, Charles Bolt não gosta de aparecer. Charles Bolt nunca deu uma entrevista. Charles Bolt nunca fez um show. Não há uma foto de Charles Bolt em lugar algum. Quem procurar informação sobre Charles Bolt vai penar. E por uma simples razão: Charles Bolt não existe.

Há cerca de um mês, o site "Music Business Worldwide" começou uma série de reportagens sobre o Spotify, um dos serviços pagos de streaming de música mais populares do planeta. Na primeira reportagem, listou 50 artistas falsos que bombam no Spotify.

São astros como Deep Watch, Milos Stavos, Allysa Nelson, Caro Utobarto e Heinz Goldbatt, que têm milhões de audições e ganham uma boa grana de direitos autorais. Segundo um cálculo feito pelo "MBW", só os royalties desses 50 artistas no Spotify ultrapassariam 3 milhões de dólares (9,4 milhões de reais).

Artistas falsos não nenhuma são novidade na música.

Em 1969, o grupo pop que mais vendeu discos no planeta foi The Archies, uma banda fictícia formada por músicos de estúdio norte-americanos e que gravou inúmeros sucessos para a trilha do desenho animado "The Archie Show", incluindo o clássico pop "Sugar Sugar".

O Brasil também teve sua cota de artistas falsos.

Na virada dos anos 1970 para 1980, um produtor esperto e talentoso chamado Jorge Gambier criou As Melindrosas, um fictício grupo infantil que cantava cantigas de roda em ritmo de discoteca. O primeiro LP, "Disco Baby" (1978), foi gravado por músicos de estúdio de São Paulo e cantado por integrantes do trio vocal feminino Harmony Cats. Foi um sucesso tão grande que a banda começou a ser chamada para shows e programas de TV, obrigando a gravadora Copacabana a correr para conseguir meninas para o grupo, lançando assim as carreiras das irmãs Gretchen e Sula Miranda.

Quer dizer que Charles Bolt, Deep Watch e Caro Utobarto seriam versões modernas de The Archies e As Melindrosas?

Sim, exceto por uma razão: o público que ouvia The Archies e As Melindrosas escolheu comprar os discos desses artistas. Já essa leva moderna de artistas falsos tornou-se famosa por influência direta do Spotify, que os incluiu em inúmeras playlists oferecidas pelo serviço.

Resumindo: o público do Spotify nunca ouviu falar de Charles Bolt, Deep Watch e Caro Utobarto, mas ouve simplesmente porque eles fazem partes de playlists como "Piano Romântico" ou "Música para Relaxar". O Spotify está aproveitando a preguiça de seus clientes para aumentar o número de audições de determinados artistas.

E por que razão o Spotify inventaria – ou ajudaria a popularizar – esses astros artificiais?

O "MBW" fez a pergunta a diversos profissionais da indústria da música, e as respostas são muito interessantes:

"Temos convicção de que as músicas acústicas de piano são de propriedade do próprio Spotify, sob outro nome."

"Isso tem acontecido há um bom tempo. Sabemos que algumas das pessoas por trás dos artistas falsos concordam em receber royalties baixíssimos, o que obviamente favorece financeiramente o Spotify."

"Temos certeza que essa estratégia foi criada para diminuir o percentual em playlists de músicas de gravadoras legítimas – grandes e pequenas – que estão investindo recursos substanciais para desenvolver artistas e músicas, para que o Spotify possa reduzir seus custos de conteúdo e diminuir a influência de gravadoras".

O Spotify nega: "Nós não criamos artistas falsos e os colocamos em playlists".

Apesar de negativa, o fato é que Charles Bolt está em diversas playlists do Spotify. Só a playlist "Peaceful Piano" ("Piano Tranquilo") tem quase 3 milhões de seguidores.

OS SUECOS, SEMPRE ELES

No dia seguinte à publicação do primeiro artigo, o "MBW" deu um furo e conseguiu identificar a origem de vários dos falsos artistas do Spotify: a dupla de produtores suecos Quiz & Larossi, formada por Andreas Romdhane e Josef Svedlund, dois ases de estúdio que já trabalharam com Kelly Clarkson, Westlife e Diana Ross.

Você pode estar ouvindo esses dois sem saber…

Mas a cobertura o "MBW" sobre os mistérios do Spotify não parou por aí.

A reportagem seguinte do site destrinchou um fenômeno tão fascinante quanto o dos artistas falsos: o dos "streams" falsos.

O site explicou como funciona o comércio de "streams" falsos, em que qualquer um pode comprar quantas audições quiser. Se tiver uma grana – nem precisa de muito – um artista desconhecido pode pagar um serviço para aumentar a quantidade de audições de suas músicas. São empresas como Streamify, Streampot e Fiverr, que vendem 2 milhões de audições no Spotify pela módica quantia de 2250 dólares.

E por que alguém compraria audições falsas?

Bom, um artista com zilhões de audições no Spotify tem muito mais chances de conseguir shows, vender sua música para comerciais e, quem sabe, um contrato com uma gravadora de verdade. Então para que perder tempo fazendo apresentações em botecos e tentando convencer dois gatos pingados a ouvir sua música? É bem mais fácil economizar uma grana, pagar um serviço desses e ter números de popstar em questão de minutos.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.