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Cadê a tal da democracia digital?

André Barcinski

12/04/2017 05h59


Uma das entrevistas mais preocupantes que li em muito tempo foi publicada essa semana pelo UOL: a do alemão Martin Hilbert, doutor em Comunicação, Economia e Ciências Sociais, professor da Universidade da Califórnia e assessor de tecnologia da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Leia a entrevista completa aqui.

Hilbert pesquisa a disponibilidade de informação no mundo contemporâneo, e suas conclusões são alarmantes. Reproduzindo um trecho da entrevista:

O fluxo de dados entre cidadãos e governantes pode nos levar a uma 'ditadura da informação', algo imaginado pelo escritor George Orwell no livro '1984'. (…)

Se alguém dissesse isso há dez anos, certamente seria contestado pela maioria que acreditava que a internet era democracia pura e liberdade. Mas hoje pessoas começam a entender a necessidade de atuação rápida. A democracia não está preparada para a era digital e está sendo destruída.

Hoje é possível, por meio de análise de dados sobre o tráfego na Internet, saber tudo que diz respeito a qualquer indivíduo: padrões de consumo, preferências pessoais, ideologia, religião, e até traços de personalidade.

Falando especificamente da cultura, tema principal deste blog – livros, música, cinema, TV – isso permite não só saber exatamente o que o público deseja consumir, mas antecipar tendências e moldar produtos ao gosto da massa.

Parece bom, mas não é. O que isso está gerando é uma ditadura da maioria, uma onda de massificação, padronização e monopolização da indústria cultural.

A "CAUDA LONGA" JÁ ERA

Em 2008, o editor da revista de tecnologia "Wired", Chris Anderson, lançou um livro muito influente, "A Cauda Longa", em que dizia que a imensa oferta de produtos na Internet acarretaria uma democratização de vendas e de informação.

Segundo Anderson, artistas mais famosos continuariam vendendo muitos discos, mas os menos conhecidos se beneficiariam com a "cauda longa", em que a cultura e economia "se afastariam de um foco em um número relativamente pequeno de 'hits' ('sucessos') e rumariam para um número imenso de nichos de mercado". Resumindo: no mundo da democracia digital, os "pequenos" sobreviveriam muito bem.

O livro de Anderson foi saudado pelos arautos da democracia digital como prova de que um período de ouro estava surgindo, um verdadeiro Renascimento, em que artistas alternativos seriam descobertos pela massa e músicos, pintores e escritores não precisariam de gravadoras, galerias ou editoras para sobreviver.

E onde estão esses arautos da democracia digital hoje?

Fácil: muitos trabalham para Google, Facebook, Amazon e outras megacorporações, justamente as que mais se beneficiaram com as previsões furadas de Chris Anderson.

Não há mais dúvida: a tal "cauda longa" foi uma falácia. Reler o livro de Anderson é até divertido, porque tudo aconteceu exatamente ao contrário do que ele previu: o mundo experimenta, hoje, uma ditadura cultural e um monopólio da informação como nunca se viu.

Aqui vão alguns dados compilados por um livro bem mais realista que o de Anderson: "Culture Crash – The Killing of the Creative Clash" ("O Assassinato da Classe Criativa"), de Scott Timberg, lançado em 2015 (e sobre o qual já escrevi no blog, em outro portal):

– Em 1982, os músicos que formavam o 1% dos mais ricos da profissão nos EUA ganharam 26% das receitas com shows. Em 2013, o 1% levou 56% da grana de shows.

– Em 2005, 13,3% dos CDs lançados no mundo venderam mais de mil cópias. Em 2010, esse percentual caiu para 6,26%. Dos 75 mil discos lançados no mundo inteiro em 2010, apenas mil venderam mais de 10 mil cópias, o menor numero já registrado.

– Em 1986, 31 canções chegaram ao topo das paradas dos EUA. Elas eram de 29 artistas diferentes. Entre 2008 e 2012, só 66 canções chegaram a número um. E quase a metade era de seis artistas: Katy Perry, Rihanna, Flo Rida, Black Eyed Peas, Adele e Lady Gaga.

– Das 100 revistas mais vendidas nos Estados Unidos, apenas duas cobrem arte.

– Nos últimos 15 anos, cerca de 80% dos críticos e repórteres de arte de jornais norte-americanos perderam os empregos.

– Em 2001, dez sites respondiam por 31% do tráfego na Internet. Em 2015, representavam mais de 75%. Mesmo assim, a imensa maioria das matérias jornalísticas publicadas na web vem de jornais da "velha mídia" (em algumas pesquisas, 95%).

– Nos Estados Unidos, há três assessores de imprensa para cada jornalista.

– Nos últimos oito anos, empregos para arquitetos, fotógrafos e designers caíram, em média, 25%.

– O interesse por literatura e artes nas universidades nunca foi tão baixo.

– O ganho médio de músicos é 30% mais baixo do que há dez anos.

Os dados são de 2015 e relativos aos Estados Unidos, mas certamente refletem a realidade geral.

Existe saída para a situação?

Acho que sim, mas passaria necessariamente por uma mudança de atitude do consumidor, e isso parece improvável. Cada vez mais, as pessoas gostam de se informar por redes sociais, aceitam recomendações feitas por algoritmos, consomem o que é popular e têm preguiça de buscar coisas novas e diferentes. Nunca tivemos tantas opções, tanta arte e informação a apenas um clique de distância, mas por outro lado, nunca fomos tão preguiçosos e complacentes.

Um ótimo feriado a todos. O blog volta segunda, dia 17.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.