“Chinatown” marcou o fim de uma era em Hollywood
Pode parecer desimportante e supérfluo retomar um blog na época apocalíptica que estamos vivendo, mas acho fundamental tentar manter um mínimo de "normalidade" em meio ao caos. Assim, decidi recomeçar a escrever – toda terça-feira – este blog, depois de 15 meses parado.
Nesse período, trabalhei em três projetos de séries de TV. Duas ainda não estrearam, mas uma delas, a série documental "História Secreta do Pop Brasileiro", está disponível nas plataformas Now, Looke e Vivo Play. Espero que gostem. E obrigado ao colega Mauricio Stycer por esse texto tão bacana sobre a série.
CHINATOWN: UM GRANDE LIVRO SOBRE UM GRANDE FILME
Acaba de sair – por enquanto só no exterior – um livro fundamental para quem admira o cinema norte-americano dos anos 1970: "The Big Goodbye: Chinatown and the Last Years of Hollywood", de Sam Wasson.
Wasson, autor de livros sobre Audrey Hepburn, Paul Mazursky e Bob Fosse, conta os bastidores da produção de "Chinatown" (1974), o clássico "noir" de Roman Polanski, e levanta uma teoria interessante: a de que o filme marcou o fim de uma era de ouro em Hollywood.
Foi bem naquele período, o meio dos anos 1970, que os grandes estúdios hollywoodianos começaram a ser controlados por executivos vindos de outras áreas, como a televisão e até mesmo a indústria farmacêutica. Muitos desses executivos não sabiam nada de cinema e não estavam interessados na história de Hollywood. O que sabiam era ganhar dinheiro.
Assim, pouco a pouco, Hollywood foi deixando de lado executivos "old school", que aprovavam filmes e roteiros usando a intuição e décadas de convívio com cineastas, produtores e roteiristas, e passou a utilizar métodos mais "profissionais", como testes com público e campanhas milionárias de lançamentos de filmes.
Em 1975, veio "Tubarão", de Steven Spielberg, um dos primeiros "blockbusters" lançados com esses critérios. O filme foi um fenômeno de bilheteria e marcou a virada para uma era de filmes cada vez mais comerciais e apelativos, deixando para trás a Hollywood que produziu alguns dos maiores clássicos do cinema norte-americano, como "O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola), "Taxi Driver" (Martin Scorsese), "A Última Sessão de Cinema" (Peter Bogdanovich), "Meu Ódio Será Tua Herança" (Sam Peckinpah), "Um Dia de Cão" e "Serpico" (Sidney Lumet) e muitos outros.
No livro, Wasson traça perfis detalhados e reveladores dos talentos que fizeram "Chinatown", como o cineasta Roman Polanski, o produtor Robert Evans, o roteirista Robert Towne e os atores Jack Nicholson e Faye Dunaway.
É fascinante ler sobre as brigas entre Polanski e Towne. Eu nunca soube, por exemplo, que o roteiro de "Chinatown", que deu o Oscar a Towne, havia sido tão modificado por Polanski. O cineasta franco-polonês abominava a versão original, que considerava piegas, e mudou muita coisa, incluindo o final, com a morte da personagem de Faye Dunaway e o triunfo do vilão da história, Noah Cross, interpretado pelo cineasta John Huston (que só aceitou o emprego de ator para pagar dívidas de jogo). A versão de Towne era bem mais "otimista".
Quando escreveu "Chinatown", Robert Towne era um roteirista de TV que havia assinado apenas um filme mais conhecido (mas que filme: "The Last Detail", de Hal Ashby!) e colaborado em obras de amigos, muitas vezes sem receber créditos, como "Bonnie e Clyde", de Arthur Penn, "The Parallax View", de Alan J. Pakula e, mais famosamente, na antológica cena entre Vito Corleone (Marlon Brando) e Michael (Al Pacino) em "O Poderoso Chefão". Francis Ford Coppola não gostava da cena que ele próprio havia escrito e ligou em desespero para Towne dizendo que, se não melhorasse aqueles diálogos, corria o risco de perder Marlon Brando. Towne voou para Nova York, conversou com Coppola, Brando e Pacino, trancou-se no hotel e escreveu até quatro e meia da manhã. No dia seguinte, levou as páginas para o set. O resultado foi isso:
Para Robert Towne, "Chinatown" era mais que um emprego. Era o filme que ele havia nascido para escrever. Towne crescera na mesma Los Angeles retratada em "Chinatown" e via o filme como um tributo a uma cidade romântica e lúdica que não existia mais, transformada – já em 1974 – num Frankenstein de freeways e lojas de fast food. Ele levou cerca de quatro anos lapidando o roteiro, só para vê-lo retalhado por Polanski.
"Chinatown" fez de Towne um dos roteiristas mais importantes de Hollywood, mas o sucesso também arruinou sua vida pessoal. Com a riqueza, ele se isolou em uma mansão, começou a cheirar quantidades cavalares de cocaína e destruiu sua família.
Um dos personagens mais interessantes – e até então desconhecidos – do livro é Edward Taylor, um amigo de Towne que foi, durante muitos anos, seu braço direito na escrita de roteiros. Taylor não se importava com fama ou dinheiro. Tudo que queria era passar os dias trancado em casa – ou melhor, na casa de Towne, onde vivia – lendo romances policiais. Towne pagava um salário a Taylor para ajudá-lo nos roteiros, e não foram poucas as contribuições de Taylor para o roteiro de "Chinatown".
E que sujeito intrigante é Jack Nicholson: fã dos Existencialistas e da literatura beat norte-americana, chegou em Hollywood sem um centavo, viveu por anos às custas de amigos como os cineastas Roger Corman e Monte Hellman e, assim que se tornou um astro, fez o mesmo por vários outros camaradas, trabalhando de graça ou por percentual de bilheteria para ajudar filmes em que acreditava.
Wasson conta que a casa de Nicholson era uma festa ininterrupta, um entra-e-sai de artistas, cineastas e músicos. Havia, como prova de amizade, uma caixa de dinheiro na sala, que qualquer um podia pegar para suprir "necessidades básicas".
Nicholson amava o cinema e a época de ouro de Hollywood com a mesma intensidade com que odiava a televisão. Nunca fez uma entrevista em talk shows e via a TV, já em 1974, como um inimigo do cinema. "Sempre fui atraído por pessoas mais velhas e que já estavam em Hollywood quando cheguei, como Sam Spiegel e Billy Wilder. Eu tive a sorte de aparecer em uma época em que eles ainda estavam por aqui e conversei com alguns deles. Eles falavam bastante sobre a importância de ter classe. Isso era uma coisa muito importante para eles, e você não ouve muita gente falando sobre isso hoje em dia. O mundo vai sentir falta da experiência de ir ao cinema."
No livro, Wasson conta histórias impressionantes sobre o talento e perfeccionismo de Roman Polanski. Membros da equipe técnica do filme relatam que o polonês dominava completamente a arte cinematográfica, a ponto de discutir detalhes técnicos de equipamentos com editores, iluminadores e com o fotógrafo John A. Alonzo (chamado às pressas depois que Polanski demitiu o genial Stanley Cortez, que havia fotografado clássicos como "Soberba", de Orson Welles, e "O Mensageiro do Diabo", de Charles Laughton, por não ter gostado do que viu nos primeiros dias de filmagem: "O estilo de Cortez e seu uso de iluminação eram antiquados", disse Polanski a Wasson).
Nenhuma cena do filme evidenciou a genialidade de Polanski mais que a derradeira, em que a personagem Evelyn Mulwray (Faye Dunaway) morre com um tiro numa rua de Chinatown. Polanski instruiu o fotógrafo Alonzo a filmar uma sequência complicadíssima, em que Alonzo teria de correr com a câmera na mão, em estilo documental, depois mostrar os policiais se aproximando do carro, virar a câmera e mostrar o cadáver de Evelyn, depois os gritos de sua filha e de Noah Cross, cortar para o detetive J.J. Gittes (Jack Nicholson) e policiais, depois subir de costas numa grua e ser suspenso nove metros no ar enquanto Gittes é levado e uma multidão se aproxima para ver a cena do crime.
Polanski fizera o filme inteiro com uma fotografia realista e evitando clichês do cinema "noir", mas guardou para o fim a única tomada lúdica e verdadeiramente "hollywoodiana" de "Chinatown". É um dos finais mais lindos da história do cinema.
UM PODCAST: MOJICA
Perdoem se a dica soa cabotina, mas o homenageado merece: junto com os amigos André Forastieri, Paulo César Martin e Álvaro Pereira Jr., gravei um podcast em homenagem ao grande José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que nos deixou em fevereiro. O podcast traz histórias e lembranças desse grande cineasta e amigo, e tem participações de outras pessoas que conheceram Mojica de perto, como os cineastas Dennison Ramalho e Paulo Sacramento, os pesquisadores Carlos Primati e Marcelo Colaiacovo, e a estilista Paula Bertone. Ouçam aqui.
UMA MINISSÉRIE: "O PEQUENO QUIN QUIN"
O serviço sob demanda Looke oferece de graça essa obra-prima dirigida em 2014 pelo francês Bruno Dumont ("L'Humanité", "Flandres"). Originalmente lançada no festival de Cannes como um longa-metragem de 206 minutos, foi exibida como uma minissérie de quatro episódios na TV francesa.
"Quin Quin" é uma história bizarra sobre uma série de crimes numa cidade costeira do norte da França. Poucas vezes vi um filme subverter tanto os manuais de roteiro e direção. Dumont criou sequências inteiras – uma missa, um show de talentos, uma parada com banda marcial – que não têm nenhuma função dramática na narrativa, mas que dizem muito sobre os personagens e a ambientação da história.
Acontece muito pouco em "Quin Quin", mas todo fotograma é uma surpresa. Não deixe de ver.
Uma dica importante: na plataforma Looke, os dois primeiros episódios estão invertidos. Quem quiser ver na ordem precisa começar de 51 minutos, no episódio "A Besta Humana", depois voltar ao início.
Uma ótima semana a todos.
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