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Agildo por Agildo

André Barcinski

02/05/2018 07h45

Em 2010, durante as gravações do programa "O Estranho Mundo de Zé do Caixão", para o Canal Brasil, demos a sorte de entrevistar, no mesmo dia, três monstros da comédia brasileira: Orlando Drummond (o "Seu" Peru), Paulo Silvino e Agildo Ribeiro.

Cada um tinha um estilo próprio: Drummond era um homem da dublagem; Silvino havia começado na música (foi um dos primeiros cantores de rock do Brasil), e Agildo vinha do teatro. Mas tinham uma coisa em comum: os três eram excelentes atores.

Logo depois da morte de Agildo, em 28 de abril, revi o programa. Na abertura da terceira parte, o comediante fala dos personagens que imitava na TV. Em três minutos, imitou Nelson Rodrigues, Chacrinha, Dercy Gonçalves, Clodovil e Ibrahim Sued. E o mais impressionante não era a voz desses personagens, que Agildo copiava com perfeição, mas a capacidade absurda de mimetismo de suas expressões faciais: os olhos entreabertos de Nelson Rodrigues, o sorriso irônico de Chacrinha, a boca puxada de Dercy… Coisa de gênio.

Em homenagem a este grande ator brasileiro, selecionei alguns trechos do livro "Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso", de Wagner de Assis, em que Agildo fala da vida a carreira.

Sei que tenho essas duas habilidades com o humor. Sei fazer um show de piadas. Interpreto tipos, uso figurinos, faço as paródias e as caricaturas que desejo. Mas, ao mesmo tempo, posso atuar numa peça como o Auto da Compadecida. A minha geração aprendeu que a arte de interpretar tem que ser completa. Naquela época, os professores nos davam aulas de voz, canto, dança, até sapateado eu fiz.

Hoje em dia a renovação é mais difícil porque a formação do ator está mais restrita. Por exemplo: se eu fosse gravar um disco atualmente, com a baixa qualidade de talentos que existem por aí, ganhava até prêmio. Às vezes, entro em choque com a realidade da televisão como um meio de comunicação que veicula uma arte imediatista. As coisas acontecem muito rápidas, sem tempo de amadurecimento dos profissionais que seriam maravilhosos se tivessem tempo para crescer – mas são estragados pela velocidade com que as coisas acontecem. Um artista estréia na segunda e, na sexta-feira, já é capa de revista. Um mês depois, é o ídolo da geração dele. Passa um ano, a Globo não o chama mais para estar na novela e ele vai tentar o suicídio… Pira porque não tem base, não tem formação para trabalhar em outros meios. Não consegue se virar numa profissão que é instável por sua natureza.

Quando comecei, a instabilidade da vida artística fazia com que nós estudássemos para sermos bem-sucedidos em outros meios de expressão. Não era só "vou fazer teatro e pronto". Tinha que ser bom, porque o público sabia discernir quem tinha competência. Quem não tinha, não se estabelecia mesmo. Uma peça acabava e eu estava procurando filme, show, teatro de revista para fazer. (…) Claro que há talentos – alguns – que sempre aparecem vez ou outra. E precisam se cuidar para não entrarem na roda viva que virou a trajetória de um artista hoje. Precisam realmente atentar para não virarem celebridades.

O fato é que encontrar um bom humorista hoje em dia é difícil. É um talento muito especial. O ator pode explodir por causa de um bom personagem. Faz um sucesso danado. Mas o humorista não pode se basear apenas num tipo. Tem que se sustentar no palco, nos personagens, nos shows, em qualquer lugar. Pra mim, o Murilo Benício é o melhor desta nova geração. Sabe atuar e fazer rir. É um ator sem crítica para o que vai fazer – isso é importante para quem está exposto à arte. O ator que critica muito seu personagem tem medo dele.Sente-se incapaz. Outro jovem carregado de talento é o Matheus Nachtergaele. Comovente a atuação dele, em qualquer gênero.

Nessa mesma época , abriram os testes para o Teatro do Estudante, que existia no Teatro Duse, coordenado pelo professor Paschoal Carlos Magno. O teste era anunciado com antecedência, tinha todo um procedimento. Até o teatro amador tinha um tom profissional. Além disso, era famosa a dificuldade de entrar no teatro do professor Paschoal por causa da rigidez da avaliação.
O teste consistia num monólogo cômico e em outro dramático. O Paschoal era muito amigo da mamãe e das minhas tias nos tempos de solteiras. Ele disse: Meu filho, se prepara!. E me deu uma edição de uma revista cultural chamada Dom Casmurro e umas peças de Molière. Disse para eu escolher um texto. Eu pensei, procurei, mas não encontrava. O que eu fiz? Imitei o próprio Paschoal.
Anos mais tarde, essa imitação transformou-se num dos meus personagens de maior sucesso, o Professor de Mitologia. Até hoje eu tenho que repetir o Coisa horrorosa!, seja no Brasil, em Portugal.

As aulas eram aos sábados e domingos. Tínhamos ensinamentos de esgrima, dança, canto, até improvisação. Aula de improvisação é o máximo, não é? A gente vivia no faz de conta e deixava a mente livre, criando, inventando. Era assim: nos davam um tema – você chega em casa e recebe um bilhete da namorada do amigo com quem você divide o apartamento. O amigo chega, vê que você está lendo o bilhete da mulher dele. Pensa em traição. Pronto, a partir dali era com a gente. É incrível dominar esse poder de improvisar. Uma delícia. Você veste uma roupa que não existe, pega um papel que não existe, mora numa casa que também não está ali. Muito divertido. Claro que devíamos ser todos canastrões, só que não sabíamos. De qualquer maneira, só o fato de estar no palco, movendo-se, falando, já era sensacional. Esses exercícios de improvisação eram julgados por outros alunos, que davam notas, criticavam e davam idéias. Também tínhamos aulas de direção, além de impostação de voz, com a d. Éster Leão, uma portuguesa rigorosa – que chegou a dar aulas a Carlos Lacerda e Juscelino. Não tenho lembranças da utilização de métodos exóticos de interpretação, como o do Stanislavski, no Teatro do Estudante.

Nunca fui muito de fazer laboratório, como se diz hoje em dia, para preparar os meus personagens. Acho até que esse foi um dos motivos pelos quais eu não fiz Macunaíma, que é um grande sucesso do cinema e um trabalho maravilhoso. Confesso que foi uma das maiores burradas da minha vida profissional. Mas eu bati de frente com o diretor Joaquim Pedro de Andrade. Todo mundo do Cinema Novo estava comigo, tentando convencer o Joaquim a me aceitar pro papel porque eu "era perfeito", como diziam.(…) Só que o Joaquim dizia que eu era muito estrela, rebelde, difícil. Ele queria que eu ficasse dois meses numa floresta em Jacarepaguá pensando: Eu sou a terra, eu sou uma minhoca, agora eu sou a chuva, nós chovemos… Depois eu sou a flor; Ah… Não dava. Além disso, o cachê era uma droga, eu estava fazendo o Topo Giggio na televisão, maior sucesso, não tinha cabeça para esse tipo de mergulho no mato.

A pior coisa do teatro chama-se ensaio. Tem o aprendizado do texto, que é a primeira fase; depois, os ensaios com a marcação de cena que ajudam muito porque os movimentos são como ajudas para as palavras; depois tem os ensaios com luz; depois com roupa; chega uma hora que você quer o público. Chega uma hora em que você precisa do público. Ator e palco sem público não existem. E eu existo menos ainda sem uma gargalhada ecoando à minha frente.

Para encerrar, aqui vai um trecho de uma entrevista antológica de Agildo no programa de Jô Soares. Hoje essa entrevista seria impossível acontecer. É engraçada demais.

MEU NOVO SITE

Estreei esses dias meu site pessoal, www.andrebarcinski.com.br, que reúne, além dos textos que publico em meu blog no UOL e na "Folha de S. Paulo", informações sobre os livros que publiquei e meus trabalhos em TV e cinema. Espero que gostem.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.