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Scorsese: por que Rotten Tomatoes e “agregadores de opinião” são um lixo

André Barcinski

16/10/2017 05h59

Semana passada, o cineasta Martin Scorsese publicou uma coluna no jornal "The Hollywood Reporter" (leia o texto na íntegra, em inglês, aqui) sobre a reação brutal ao filme "Mãe!", de Darren Aronofsky. O tema mais importante do texto não foi a defesa do filme, mas a análise certeira que Scorsese faz sobre sites "agregadores de opinião", como Rotten Tomatoes, e firmas de pesquisa de mercado, como Cinemascore, que se tornaram referência na avaliação da qualidade dos filmes.

Alguns trechos da coluna:

Nos últimos 20 anos, muitas coisas mudaram no cinema. Essas mudanças ocorreram em todos os níveis, da maneira como filmes são feitos à forma como são vistos e discutidos. Muitas dessas mudanças têm vantagens e desvantagens. Por exemplo: a tecnologia digital permitiu a jovens cineastas fazerem filmes de uma maneira imediata e independente; por outro lado, o desaparecimento da projeção em 35mm da maioria dos cinemas é uma verdadeira perda.

Existe uma mudança que, acredito, não traz vantagem alguma. Começou nos anos 80, quando a "bilheteria" começou a se tornar a obsessão que é hoje. Quando eu era jovem, notícias sobre bilheteria de filmes eram restritas a jornais da indústria, como "The Hollywood Reporter". Agora, temo que elas tenham se tornado… tudo. A bilheteria virou o centro de quase todas as discussões sobre cinema
(…)

O julgamento brutal que tem transformado o faturamento de um filme em um espetáculo sanguinolento parece ter encorajado um viés ainda mais brutal de análise de filmes. Falo de firmas de pesquisa de mercado, como Cinemascore, que começou no fim dos anos 70, e sites "agregadores", como Rotten Tomatoes, que não têm absolutamente nada a ver com crítica de cinema de verdade. Eles avaliam um filme como se avalia um cavalo numa corrida (…) Eles têm tudo a ver com a indústria do cinema e nada a ver com a criação ou análise inteligente de um filme. O cineasta é reduzido a um produtor de conteúdo e o espectador, a um mero consumidor.

Essas firmas e agregadores estabeleceram um tom hostil a cineastas sérios – até mesmo o nome Rotten Tomatoes ("Tomates Podres") é insultante. E assim como a crítica de filmes feita por pessoas apaixonadas e donas de conhecimento sobre a história do cinema tem gradualmente desaparecido da cena, parece que há cada dia mais vozes engajadas em sentenciar, pessoas que parecem ter prazer em ver filmes e cineastas rejeitados e, em alguns casos, destruídos. Como a multidão desesperada e sedenta de sangue no fim de "Mãe!", de Darren Aronofsky.
(…)

Bons filmes feitos por cineastas de verdade não são feitos para serem decodificados, consumidos ou instantaneamente compreendidos. Eles não são nem mesmo feitos para serem instantaneamente admirados. Eles são feitos porque a pessoa atrás da câmera precisava fazê-los. E, como qualquer pessoa familiarizada com a história do cinema sabe, há uma longa lista de títulos – "O Mágico de Oz", "A Felicidade Não Se Compra", "Um Corpo Que Cai" e "À Queima-Roupa", só para citar alguns – que foram rejeitados quando lançados, e depois se tornaram clássicos. "Tomatômetros" e notas do Cinemascore vão desaparecer em breve. Talvez sejam substituídos por algo ainda pior, ou talvez sumam e se dissolvam na luz de um renascimento da análise de filmes. Nesse tempo, filmes feitos com paixão, como "Mãe!", continuarão a crescer em nossas mentes.

Não vou entrar no mérito da opinião de Scorsese sobre "Mãe!". Ele conhece um pouquinho sobre cinema e diz ter gostado muito (eu ainda não consegui ver o filme, porque não há um cinema num raio de 250 km de minha casa exibindo-o).

Já a opinião do cineasta sobre o Rotten Tomatoes (e, por extensão, IMDB, Cinemascore, e todos os sites que agregam opiniões do público) não poderia ter sido mais feliz. Quem usa esses sites para se informar sobre filmes só quer mais do mesmo.

A maior falácia da chamada "democracia digital" é dizer que deu voz ao povo. Porque a voz que manda mesmo é da indústria. Esses sites não avaliam nada mais que popularidade, e os "eleitos" são sempre produtos hollywoodianos e feitos por grandes estúdios.

Pode-se estender isso a todos os sites "agregadores", de todas as áreas. Quem gosta de viajar e se informa pelo Trip Advisor vai acabar sempre nos mesmos lugares; quem gosta de ler e se guia pela lista de melhores do Goodreads vai descobrir que "Jogos Vorazes" é um clássico da literatura mundial; quem curte gastronomia e acredita no Yelp acabará não no melhor restaurante da cidade, mas no mais popular.

Segundo o Trip Advisor, dos oito melhores restaurantes de comida brasileira em São Paulo, quatro fazem parte da mesma rede, e o segundo melhor restaurante japonês da cidade é uma temakeria. Já o Rotten Tomatoes escolheu "Zootopia" o melhor filme de 2016.

O público que consome esses sites nem faz ideia a quem eles pertencem ou que interesses defendem. O Goodreads e o IMDB são da Amazon; o Trip Advisor é dono de um monte de sites de hospedagem em todo o mundo, e o Rotten Tomatoes pertence à Fandango, uma das maiores empresas de venda de ingressos de cinema dos Estados Unidos (que, por sua vez, é de propriedade da Warner, NBC e Universal). Ou seja: o Rotten Tomatoes "avalia" os filmes, e sua dona, a Fandango, que pertence a estúdios de cinema, fatura vendendo os ingressos. Não é linda a democracia digital?

No fim do texto, Scorsese diz não saber se as coisas vão piorar ou melhorar. Sou bem mais pessimista: acho que o caminho que escolhemos não tem volta. As novas gerações de cinéfilos vão crescer num ambiente em que o Rotten Tomatoes e o IMDB decidem que filmes devem ou não ser vistos. A crítica especializada – de todas as áreas – já virou nicho do nicho, e as pessoas cada vez mais consumirão os mesmos filmes, livros, discos, restaurantes, passeios e hotéis. É a monopolização travestida de "voz do povo".

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.