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Documentário picareta sobre Lady Gaga é o pior filme do ano

André Barcinski

05/10/2017 07h30

Faça um favor a você mesmo(a) e assista a "Five Foot Two", documentário sobre Lady Gaga disponível no Netflix. É o filme musical mais involuntariamente engraçado desde "Cinderela Baiana" (1998), o épico do axé em que Carla Perez combate o trabalho infantil no sertão da Bahia usando o poder sacolejante de seus quadris.

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Chamar esse filme de "documentário" é enganoso. Mais adequado seria "peça de propaganda", já que foi produzido pela própria Gaga, por seu agente, Bobby Campbell, e por seu empresário, Arthur Fogel.

Que uma tranqueira dessas tenha merecido críticas – e elogiosas! – de veículos sérios de imprensa demonstra o grau de submissão de nossa mídia cultural a qualquer picaretagem vendida por celebridades.

O filme é, supostamente, um "mergulho profundo" na intimidade dessa figura "genial", "misteriosa" e "fascinante", mas, sendo um veículo de publicidade feito para vender a artista, não demonstra um pingo de senso crítico ou imparcialidade.

Gaga passa o filme todo sendo paparicada e elogiada por um batalhão de puxa-sacos. A diva é mostrada como uma alma boa e calorosa – ela dá comida para cachorrinhos! Chora no batizado de um bebê! Debulha-se em lágrimas ao receber flores do ex-noivo! – tudo na frente das câmeras, claro, para máximo impacto melodramático.

Vale tudo para se mostrar sensível e amorosa, até encurralar a coitada da avó diante da câmera e perguntar o que a idosa acha da música que Gaga fez para a filha dela, Joanne, que morreu de lúpus, aos 19 anos. "Achei linda", diz a coroa. O que Gaga queria que a avó dissesse? "Netinha, vai pro inferno, não me constranja desse jeito, sua víbora maquiavélica!"?

Em outros momentos de pura bondade compartilhada com o planeta, Gaga chora quando lembra uma amiga que está lutando contra um câncer e cai em prantos abraçada a uma fã que diz que a música de Gaga lhe ajudou a superar impulsos suicidas. Snif, snif.

Nos momentos mais "íntimos" – ou seja, cercada por uns 37 integrantes da equipe de filmagem – Gaga fita a câmera com expressão bovina e olhar perdido no horizonte, e declama platitudes como "De dia, todo mundo me ama; à noite, fico sempre sozinha", ou "Acho que cheguei a uma fase de minha carreira em que preciso fazer uma retrospectiva de minha obra". Hilariante.

Em uma das cenas mais comentadas do filme, Gaga esculhamba Madonna. Quase todas as críticas citam essa cena. Uma pesquisa rápida no Google com as palavras "Gaga", "Madonna" e "feud" ("briga", "disputa"), deu mais de meio milhão de resultados. O que ninguém lembra é que Lady Gaga e Madonna têm o mesmo empresário, Arthur Fogel (ele coordena a carreira das duas, incluindo turnês, discos e merchandise), que nesse exato momento deve estar gargalhando com os milhões que ganhou com a publicidade gratuita gerada por essa briga de araque (quem quiser saber um pouco mais sobre Fogel e sua empresa, a Live Nation, pode ler esse artigo que fiz em 2014).

"Five Foot Two" não é nada mais que um comercial gigante interpretado por uma atriz canastrona que se acha a Joni Mitchell. E o Netflix, em respeito ao telespectador, deveria incluir outra categoria em seu catálogo: a de documentários picaretas produzidos pelos próprios retratados (dois exemplos recentes são os filmes sobre o DJ Steve Aoki e o guru de auto-ajuda Tony Robbins, ambos trambiques em grau máximo).

E não podia finalizar sem lembrar a cena mais engraçada do filme: quando Gaga revela que foi convidada para o papel principal do terceiro remake do musical "Nasce Uma Estrela". O filme será lançado em maio do ano que vem e é dirigido pelo ator Bradley Cooper, em sua estreia como cineasta. Gaga fará o papel que foi de Janet Gaynor, Judy Garland e Barbra Streisand. E 2018 já tem um sério candidato a pior filme do ano.

Um ótimo fim de semana a todos.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

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