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Comparado ao jabá moderno, Chacrinha era amador

André Barcinski

29/09/2017 05h59


Semana passada, escrevi uma coluna contando uma história sobre Chacrinha, relatada por Roberto Menescal (leia aqui). Menescal, que nos anos 70 foi diretor artístico da gravadora Polygram, disse que Chacrinha exigiu um televisor estéreo para exibir um determinado artista da gravadora em seu programa de TV.

Alguns leitores questionaram a importância de Chacrinha. Um deles dizia não entender como um programa tão ruim (na opinião dele, leitor) poderia ter feito tanto sucesso.

É difícil compreender a importância e influência de Chacrinha sem analisá-lo no contexto dos anos 1970 e 1980.

O Chacrinha que conhecemos – o personagem que zoava calouros, distribuía abacaxis e apresentava artistas famosos – teve uma carreira televisiva de duas décadas: de sua chegada à Globo, em 1967, até meados dos anos 1980, depois de passar por Tupi, Bandeirantes, e finalmente retornar à Globo (em 1982).

Chacrinha pegou, portanto, a explosão da TV no Brasil, que aconteceu depois do "Milagre Econômico" da virada da década de 1960 para a de 1970. Foi ali que a TV passou a ter, para a divulgação da música, a mesma importância do rádio. Esse período coincidiu com a criação, pela Rede Globo, da gravadora Som Livre (1969) e da imensa popularização dos discos com trilhas sonoras de novelas.

Não é coincidência que muitos dos nomes mais famosos do pop brasileiro dos anos 1970 – Guilherme Arantes, Gretchen, Sidney Magal – eram artistas de forte apelo visual, que se destacavam na TV.

Mister Sam, o produtor argentino que descobriu Gretchen e teve grande sucesso com discos de Black Juniors, Gugu Liberato e Nahim, conta que escrevia canções pensando exclusivamente nos programas de auditório: "Você pode perceber que quase todas as minhas canções têm introduções longas. Eu fazia isso para dar tempo de o artista entrar no auditório, cumprimentar o júri, mandar um beijinho pro público e chegar no meio do palco, bem na frente das câmeras".

Os programas de auditório não só eram populares, mas também ecléticos. Tocavam música romântica, pop, rock, samba e sertanejo. Marcelo Nova, líder do grupo Camisa de Vênus, diz que o apresentador que mais ajudou sua banda a vender discos e shows não foi nenhum DJ de programa de rock alternativo, mas o veterano Raul Gil: "Se não fosse pelo Raul Gil, que sempre levou o Camisa em seus programas, muita gente no Brasil não teria nos conhecido".

O programa de Chacrinha também tinha esse ecletismo. Claro que o Velho Guerreiro não apresentava artistas desconhecidos e alternativos, mas era possível ver, num mesmo programa, uma banda de rock iniciante (Ira!, Ultraje), um sambista famoso (Agepê, Alcione), um cantor romântico (José Augusto, Wando) e um artista pop (Ritchie, Lulu Santos). Toda a família via o programa: os avós para ver Roberto Carlos, os pais curtindo a Rita Lee, e os filhos salivando com a Rita Cadillac.

A importância de Chacrinha é incontestável, mas isso não apaga o fato de ele ter sido acusado, durante quase toda a carreira, de cobrar jabá para divulgar músicas e exigir que artistas que apareciam em seu programa se apresentassem de graça em shows de playback que ele promovia nos subúrbios do Rio. O filho de Chacrinha, Leleco Barbosa, disse à Folha de S.Paulo, em 2003, que o que havia não era jabá, mas uma "troca de interesses" entre a gravadora e o programa do pai: "A gravadora queria botar [no programa] o artista tal. Se papai gostasse, botava. Mas, como produzia shows com artistas, chacretes e calouros, a 'caravana', fazia uma troca: 'Boto o artista [na tv], mas ele tem que ir ao show [cujos ingressos eram cobrados]. Era uma coisa mais que justa. Se o cara queria se lançar no programa, ia ao show em contrapartida".

JABÁ E "TROCA DE INTERESSES"

A definição mais conhecida de "jabá" é aquela em que uma gravadora paga a uma emissora de rádio ou TV para tocar determinada canção.

O que muitos não sabem é que existiram também outras formas de "troca de interesses" entre artistas, gravadoras e emissoras. E uma das mais comuns – embora desconhecida do público – envolvia a cessão de parcerias em músicas.

Há alguns anos, entrevistei um famoso cantor e compositor da música brasileira dos anos 1970. Eu conhecia os discos dele e perguntei quem eram os parceiros listados em algumas canções. Ele concordou em responder, contanto que eu não revelasse sua identidade e a dos parceiros. E contou que aqueles "compositores" na verdade eram diretores de alguns dos programas de auditório mais famosos da época. Ele trocava parcerias por aparições nos programas. "Todo mundo fazia, era normal", disse.

Em algumas ocasiões, a parceria foi um simples agradecimento por uma ajuda prestada: em 1978, o produtor Mister Sam estava vendo o programa de Silvio Santos quando uma caloura, que não devia ter mais de dezoito anos, chamou a sua atenção: "Fiquei louco, ela era linda e gostosa, muito sensual, era uma estrela!". Sam ligou para o amigo Valentino Guzzo, diretor do programa – e que depois ficaria famoso interpretando a Vovó Mafalda, no Bozo –, e pegou o contato da moça. Ela se chamava Maria Odete Brito de Miranda e era cantora da orquestra do maestro Záccaro. Sam a transformou em Gretchen. E quando gravou o compacto de estreia da moça, "Dance With Me", incluiu o amigo Valentino como parceiro nas músicas, com o pseudônimo de V. Guzzrick.

A verdade é que essas práticas eram tão disseminadas em nossa indústria musical que muita gente não via nada de errado nelas. Se Chacrinha realmente cobrou grana de gravadoras e obrigou artistas a tocar em suas "caravanas", estava longe de ser o único a fazer isso. Mas o Velho Guerreiro era tão famoso que acabou ficando com a fama. Prova disso é uma piada (repito: é uma piada!) que um amigo contou ter ouvido nos bastidores de um programa de auditório na TV Bandeirantes, nos anos 80: segundo ele, dois velhos técnicos da emissora conversavam, quando um perguntou ao outro a origem da palavra jabá. E o outro respondeu, na lata: "Você não sabe? É Jo-sé A-be-lardo Bar-bosa!".

FALANDO EM JABÁ…

Ontem, no Twitter, o crítico musical de um canal da TV paga que costumeiramente transmite o Lollapalooza reclamou do meu texto sobre a escalação do festival.

O cara tem todo o direito de pensar o que quiser sobre o texto. Muitos leitores também discordaram. Isso é normal e saudável. Mas seria bom lembrar que ele, enquanto empregado de uma emissora que transmite o Lollapalooza – sempre em tom efusivo – pode não ter a imparcialidade jornalística necessária para avaliar o festival de maneira isenta.

Foi uma coincidência esse tuíte acontecer justamente quando eu escrevia sobre o Chacrinha e a "troca de interesses". Porque essa prática em que emissoras vendem espaço publicitário em troca de uma cobertura elogiosa – que alguns chamam de "conteudismo", outros de "cobertura patrocinada", enfim, de mil formas inventadas por agências de publicidade – é, no fundo, no fundo, o bom e velho jabá.

E digo mais: é um jabá muito mais esperto do que o praticado na época do Chacrinha. Porque o jabá dos programas de auditório acontecia na TV aberta, e o público não pagava para ver o programa. Já esse jabá modernex rola na TV paga, e agora o telespectador está pagando para ver propaganda.

Perto desse jabá Nutella, o jabá raiz da época do Chacrinha era coisa de amador.

Um ótimo fim de semana a todos.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.