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Ele escreveu o manual do terrorista moderno – e passou a vida atormentado

André Barcinski

06/09/2017 05h59

O Netflix exibe "Anarquista Americano", documentário sobre o autor William Powell.

No fim dos anos 1960, Powell era um dos muitos radicais de esquerda que andavam pelo Greenwich Village, em Nova York, protestando contra a Guerra do Vietnã e defendendo o uso de força para derrubar governos.

Em 1970, aos 19 anos, ele passou quatro meses pesquisando manuais militares em bibliotecas públicas e escreveu um livro que se tornaria célebre: "The Anarchist Cookbook" ("O Livro de Receitas Anarquista"), um manual de fabricação de bombas caseiras, táticas de guerrilha e instruções para "começar uma revolução".

O livro foi rejeitado por mais de 30 editoras, até que chamou a atenção do editor Lyle Stuart, conhecido nos meios literários pela publicação de obras polêmicas. Stuart lançou o livro em 1971, e a repercussão foi imensa: a polícia e o FBI condenaram o livro e acusaram Powell de apologia à violência.

Powell era um autêntico radical chic: filho de um secretário de imprensa das Nações Unidas e de uma médica, teve uma vida de classe média alta, nunca chegou perto de uma célula terrorista e sequer havia testado as fórmulas de explosivos que divulgara no livro.

Em meados dos anos 70, Powell teve um filho e começou a dar aulas para crianças com dificuldade de aprendizado. Logo se arrependeu de ter escrito "The Anarchist Cookbook". Dizia-se envergonhado por ter feito um livro tão inflamatório e radical, e deixou os Estados Unidos para lecionar na Ásia e África.

Mas o livro não o deixava em paz: durante os anos 70, grupos radicais de esquerda e direita começaram a usar as "receitas" de bombas caseiras em atentados. E Powell não tinha poder para barrar novas edições da obra, porque havia vendido os direitos para Lyle Stuart por 10 mil dólares, abrindo mão dos royalties.

Powell deixou de ganhar uma fortuna: "The Anarchist Cookbook" vendeu cerca de 2 milhões de cópias.

Em 2015, o documentarista Charlie Siskel, diretor de um excelente filme sobre a fotógrafa-babá Vivian Maier ("Finding Vivian Maier"), achou Powell morando no interior da França e passou uma semana entrevistando-o. O resultado é "Anarquista Americano", um filme que não só documenta um período caótico e radical da história norte-americana – a virada dos anos 60 para os 70 – como traça um perfil comovente de um homem que passou a vida toda perseguido por um erro que cometeu na juventude.

Powell em 2015 e 1970

Powell diz que se isolou em vilas remotas na África e conseguiu "fugir" do livro por alguns anos, mas, com o advento da Internet, uma nova geração de radicais começou a se inspirar em "The Anarchist Cookbook", e os resultados foram trágicos: quando soube que os dois adolescentes que mataram 13 pessoas na escola Columbine, no Colorado, haviam citado seu livro como inspiração, Powell escreveu uma carta à Amazon, site onde o livro é vendido, dizendo-se arrependido de tê-lo escrito e sugerindo que sua publicação fosse interrompida:

"Durante os anos seguintes à publicação, eu fui para a universidade, casei, tive um filho e tornei-me professor de adolescentes. Tudo isso teve um profundo efeito moral e espiritual em mim. Descobri que eu não mais concordava com o que havia escrito anteriormente, e me sentia crescentemente incomodado com o fato de ter assinado idéias com as quais não compactuava (…) infelizmente, o livro continua a ser publicado e, com o advento da Internet, muitos sites passaram a publicar textos sobre ele. Quero deixar claro que não concordo com o conteúdo de 'The Anarchist Cookbook' e ficaria muito feliz (e aliviado) se sua publicação fosse interrompida. Eu a considero uma publicação errada e potencialmente perigosa, que deveria ser retirada de circulação."

Powell não viu o livro sair de circulação. Aliás, não viu nem o filme sobre sua vida: morreu em julho de 2016, poucos meses antes do lançamento do documentário.

Um ótimo feriado a todos. O blog volta segunda, dia 11.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.