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Música de festa de firma uma ova: por que o Village People foi mais punk que o Sex Pistols

André Barcinski

09/08/2017 05h59

Há 40 anos, o grupo inglês Sex Pistols lançou "Never Mind the Bollocks", disco clássico do punk rock em que Johnny Rotten vislumbrava o Reino Unido tomado pela anarquia: "É a única maneira de ser", dizia a letra.

Enquanto Joãozinho Podre teorizava sobre anarquia, do outro lado do Atlântico um produtor musical trabalhava num gênero totalmente oposto ao punk – a discoteca – e conseguia o que o "inventor" do Sex Pistols, Malcolm McLaren, apenas sonhava: ficar milionário esculhambando o sistema.

Seu nome era Jacques Morali, e sua criação, o Village People.

Para muitos, a discoteca era um gênero musical apolítico, conformista e superficial, música descartável feita para dançar. Mas a verdade era outra: a discoteca nasceu no gueto, em pequenas festas de gays negros e latinos, e deixou uma quantidade incrível de canções radicais que celebravam a tolerância e a liberdade sexual. Seu imenso sucesso comercial, ocorrido entre 1976 e 1978, foi um período fascinante da música pop, quando o público costumeiramente careta do "mainstream" se rendeu a uma música que celebrava um estilo de vida livre e hedonista.

Jacques Morali enxergou isso antes de todo mundo. Quando inventou o Village People, ele já era um produtor conhecido. Seu primeiro grande sucesso foi esse, inspirado por sua paixão por Carmen Miranda:

Numa noite em 1977, Morali estava numa discoteca gay em Nova York, quando viu um dançarino vestido de índio. Ao lado do índio, dançava um sujeito vestido de policial. Ali mesmo, naquela pista de dança, Morali teve uma visão, um desses lampejos fulminantes de genialidade e ousadia que só aparecem quando o escolhido se encontra tomado por uma euforia extrema e com as vias nasais entupidas por meio quilo de farinha: Morali sonhou em montar uma banda pop formada por estereótipos do macho americano: o índio, o policial, o caubói, o motoqueiro e o peão de obra.

Nascia o Village People, batizado em homenagem ao bairro nova-iorquino que há décadas resistia como uma meca de tolerância e ativismo gay.

O primeiro disco saiu em julho de 1977 e foi um sucesso moderado, chegando à 54ª posição na parada da revista "Billboard". Morali e seu sócio, o produtor Henri Belolo, eram responsáveis por todas as músicas e coreografias. Mas foi só quando Morali deixou as canções a cargo de seu Mozart – o dançarino, ator, cantor e compositor Victor Willis – que a coisa decolou.

Além de cantar e dançar vestido de oficial da Marinha, Willis (que, acredite, não era gay) tinha um dom impressionante para criar hits de pura perfeição pop. Ele adicionou humor e escracho às letras do Village People e, com suas tiradas espertas e frases de duplo sentido absolutamente geniais, deu à banda três discos gigantes: "Macho Man"(1978), "Cruisin'" (1978) e "Go West" (1979).

Entre 1978 e 1979, nenhuma banda do mundo foi tão subversiva quanto o Village People. Eles levaram ao "mainstream" canções que exaltavam o mundo gay e fizeram milhões de pessoas cantar – a grande maioria sem perceber – letras de teor altamente homoerótico.

Toda vez que vejo um vídeo como esse, me pergunto se as pessoas têm alguma noção do que estão cantando:

A genialidade de Willis estava em esconder suas tiradas em músicas festivas, bem humoradas e aparentemente ingênuas, verdadeiros hinos de festas de firma, mas que continham algumas das mensagens mais radicais da música pop. Em "YMCA", Willis descreve a Associação Cristã de Moços como um lugar "onde você vai encontrar muitas maneiras de se divertir", um porto seguro onde qualquer rapaz pode "encontrar todos os meninos".

A letra fala de jovens que chegam a cidades grandes e, temerosos de assumir sua sexualidade, encontram na ACM um lugar onde podem fazer parte da coletividade. Pouca gente percebeu, mas a letra era um chamamento.

A ACM gostou tanto da canção que passou a usá-la em comerciais.

O compacto de "YMCA" vendeu cerca de 12 milhões de cópias, tornado-se o 22º "single" mais vendido da história da música. Se "YMCA" foi o maior sucesso comercial de Willis, sua obra-prima foi mesmo "In the Navy", uma paródia às músicas ufanistas das Forças Armadas e que tinha um dos versos mais perversamente sacanas do pop: "They're signing up new seamen fast", cuja tradução literal é "Eles [a Marinha] estão recrutando novos marinheiros rapidamente", mas no qual a palavra "seamen" ("marinheiros") pode também soar como "semen" (sêmen, em inglês): "A Marinha está recrutando sêmen novo rapidamente".

A Marinha não só não percebeu a sacada, como ainda agradeceu à banda, cedendo uma fragata de 133 metros, a USS Reasoner, para o Village People filmar esse videoclipe (Victor Willis é o cantor e capitão do barco):

O reinado do Village People durou pouco, e a banda afundou na virada dos anos 70 para os 80, quando o fenômeno da discoteca acabou. Willis saiu do grupo em 1980, tentou uma carreira solo que não deu certo e se afundou nas drogas, mas felizmente conseguiu se recuperar. Há alguns meses, para delírio de índios, peões de obra, policiais e oficiais da Marinha, Victor Willis anunciou que estava voltando ao Village People.

Já seu produtor, o grande Jacques Morali, teve um fim muito mais triste: morreu de AIDS em 1991.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.