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Roger Waters ressuscita o álbum político

André Barcinski

31/05/2017 05h59

Numa época em que o conceito de "álbum" praticamente acabou e quase ninguém ouve um disco do início ao fim, Roger Waters ainda resiste.

O ex-líder do Pink Floyd não só continua lançando LPs, como insiste em fazer discos temáticos e políticos.

Datado? Certamente. Mas se alguém tem o direito de fazer discos assim, é Waters, criador de álbuns políticos como "The Wall" (1979) e "The Final Cut" (1983).

Essa semana chega às lojas de discos (loja de disco? O que é isso?) o novo LP de "Waters", "Is This The Life We Really Want?", sua primeira coleção de músicas inéditas em 25 anos. No disco, ele ataca Trump, a globalização, reclama da situação da Síria e dos refugiados.

Veja uma filmagem de dias atrás, em que Waters e banda tocam "Picture That", música do novo álbum…

Em shows recentes, Waters usa faixas antigas do Pink Floyd para criticar Donald Trump. É o caso de "Pigs (Three Different Ones)", faixa de "Animals" (1977), em que telões mostram o presidente norte-americano de batom, capuz da Ku Klux Klan, com cabeça de porco e sem calças, deixando à vista um pênis minúsculo, enquanto reaparece o famoso inflável do porco gigante, usado na turnê de 1977, dessa vez com uma imagem do presidente com cifrões nos olhos e uma inscrição: "cofrinho de guerra".

Escrevi sobre o novo disco de Roger Waters para a "Folha":

Roger Waters tem 73 anos e está revoltado. Revoltado contra Trump, o aquecimento global, o tratamento dado aos palestinos, a globalização e a situação dos refugados. E quando algo perturba Waters, sua primeira reação é canalizar a revolta em música. Foi assim que o Pink Floyd criou discos clássicos como "The Dark Side of the Moon" (1973), inspirado no estado mental em deterioração do ex-integrante Syd Barrett, e "The Wall" (1979), um trabalho autobiográfico sobre a vida de um personagem chamado Pink, claramente moldado na vida do próprio Waters.

"Is This The Life We Really Want?" é o quinto disco de estúdio de Waters e sua primeira coleção de canções inéditas em 25 anos (sem contar a ópera "Ça Ira", de 2005). E o tema que une as canções não é uma questão em especial, mas a pergunta que dá nome ao trabalho: "É este o mundo que queremos?". É um excelente título, que abarca uma infinidade de questões e possibilidades.

As letras do novo trabalho de Waters são, como sempre, cinematográficas e de alto impacto visual. Você ouve a música e imediatamente se imagina na situação descrita por ele. "Eu sonhei que estava dizendo adeus para minha filha / ela olhava pela última vez para o oceano", ele canta em "The Last Refugee" ("O Último Refugiado"). O clima do disco segue o tom proselitista do Pink Floyd, misturando paranóia, previsões sombrias e a descrição de um mundo em colapso moral e social, dominado por "banqueiros gordos" e ameaçado por políticos com a mão no botão das bombas. Parece datado, e é mesmo. Mas quem pode duvidar da sinceridade de Roger Waters? Na voz dele, até letras que parecem peças de propaganda da Guerra Fria soam convincentes.

Há mais de 40 anos, Waters criou um estilo peculiar de canção de protesto, em que a doçura melódica das canções se contrapõe à violência dos textos. Nenhuma banda da música pop conseguiu ser tão sombria e ao mesmo tempo soar tão doce quanto o Pink Floyd. No novo disco, Waters continua explorando essa dicotomia, por meio de texturas eletrônicas, violões plangentes e colagens de sons feitas pelo produtor Nigel Godrich – não por coincidência, famoso por seu trabalho com uma banda que sempre cultuou a música melancólica e poderosa do Pink Floyd: o Radiohead.

O novo disco pode não estar no nível dos grandes trabalhos de Waters, mas prova que ele continua acreditando no poder da música para despertar a consciência crítica de seus ouvintes. De novo: isso pode parecer um conceito datado, mas Roger Waters não quer saber disso. Ele nunca muda para satisfazer aos outros.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.