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O dia em que George Michael "descobriu" a China

André Barcinski

10/04/2017 05h59


Hoje, viajar à China é moleza; o país está completamente inserido no circuito turístico mundial e aberto a visitantes ocidentais. Mas houve um tempo, pré-queda do Muro de Berlim, em que viajar ao país comunista implicava transpor barreiras burocráticas kafkianas e lidar com a má vontade dos militares locais.

E se viajar a turismo era difícil, imagine fazer uma turnê de uma banda pop pela China?

Em 7 de abril de 1985, uma banda pop chegou aonde nenhuma banda pop havia chegado: ao coração da China comunista. Nesta data, o duo Wham!, formado por George Michael e Andrew Ridgeley, fez o primeiro show de um grupo ocidental na China.

Há dois anos, escrevi sobre essa turnê do Wham!:

Simon Napier-Bell tem 77 anos e é uma lenda dos bastidores do showbiz. Nos anos 60, escreveu letras para Dusty Springfield e empresariou os Yardbirds; nos 70, descobriu Marc Bolan e depois agenciou o Wham!.

Recentemente, Napier-Bell escreveu um dos melhores livros que já li sobre os bastidores e trambiques da indústria do disco, "Ta-ra-ra-boom-de-ay: The Dodgy Business of Popular Music".

Numa entrevista recente à revista inglesa "Mojo", ele conta que, em 1983, num jantar com o Wham!, o empresário da banda, Jazz Summers, o desafiou: "Se você quiser agenciar George e Andrew, precisa torná-los a maior banda do mundo em no máximo um ano".

A saída foi chegar a um local em que nenhuma banda pop havia se aventurado até então: ao coração da China comunista.

Depois de 18 longos meses de negociações com militares chineses, Napier-Bell finalmente conseguiu liberação para uma pequena turnê do Wham! pelo país. "Tivemos de pagar tudo, até por uma equipe de cem chineses que ficou o tempo todo de braços cruzados". Um burocrata ofereceu à banda mil fãs para recebê-los no aeroporto. Por uma quantia módica, claro.

Os problemas técnicos e a infernal burocracia chinesa quase levaram a equipe à loucura. Em um caso, levou mesmo: um trompetista português, membro da banda de apoio do Wham!, sofreu um surto psicótico durante um voo interno e se cortou com um canivete. "Ele foi algemado e sedado", conta Napier-Bell. "Você não imagina a burocracia que tivemos de enfrentar para interná-lo numa hospital psiquiátrico local".

Em outro momento marcante da viagem, a banda passeava por um mercado ao ar livre quando um dos membros do staff assustou-se com algo: "Acho que aquilo ali pendurado é um cachorro!" Ao que o intérprete respondeu: "Se você não gosta de cachorro, podemos conseguir um gato".

Napier-Bell sabia que a turnê na China renderia manchetes em todo o mundo e convenceu a CBS a levar 15 jornalistas para a China e a bancar a produção de um filme sobre a viagem: "Foreign Skies", de Lindsay Anderson (veja aqui, na íntegra):

O investimento deu resultado: o Wham! apareceu na capa de revistas importantes como "Time" e "Newsweek" e viu seu público multiplicar nos Estados Unidos. O tour manager Jake Duncan diz: "Voltei à China muitas vezes depois com o [grupo pop] Westlife. Pequim é só aço e vidro agora, não podia ser mais diferente do que era na primeira vez em que estive lá".

Bom fim de semana a todos.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.