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Meu ídolo Juca Kfouri acaba de inventar o regulamento de ocasião

André Barcinski

18/10/2016 12h49

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Quem gosta de futebol e foi adolescente nos anos 70 e 80 venera Juca Kfouri. Quem sonhava em ser jornalista, mais ainda. Eu sei, porque fui seu leitor e fã desde que comecei a colecionar a revista "Placar".

Depois, na ESPN, Juca e Trajano se notabilizaram por um jornalismo apaixonado e combativo. Faziam oposição sistemática aos desmandos da FIFA, da CBF e das federações estaduais de futebol, e com isso influenciaram muita gente e ganharam muitos admiradores.

Por isso, é uma enorme surpresa ler a coluna de Juca publicada hoje no UOL (leia aqui).

A começar pelo titulo: "Como atrapalhar um belo Brasileirão". A tese de Juca é de que o Fluminense, que reivindica na Justiça Desportiva o cumprimento da regra e a anulação de uma partida em que houve um evidente erro de direito – erro confirmado até por ele próprio ("Todo mundo sabe: houve interferência externa na confirmação da anulação do gol de empate do Flu") – está "atrapalhando" o campeonato.

Me parece uma total inversão de valores: segundo Juca, quem atrapalha o campeonato não é quem comete uma irregularidade punível com anulação do jogo, mas quem reclama dessa irregularidade.

Outra frase que merece destaque:

Com subterfúgios formais o Fluminense quer transformar um gol irregular em motivo para anular o jogo.

Em primeiro lugar, não acho correto chamar a obediência ao regulamento de "subterfúgio formal". "Subterfúgio" significa "manobra" ou "ardil", e não é possível aceitar que o cumprimento à lei seja considerado manobra ardilosa.

Outro ponto que me parece errado é dizer que o Fluminense "quer transformar um gol irregular em motivo para anular o jogo". O gol irregular não está em questão. O motivo do pedido de anulação é a interferência externa, cometida inclusive pelo inspetor da partida (e evidenciada por uma reportagem do "Esporte Espetacular", da Rede Globo). A anulação da partida é prevista pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que no artigo 259, § 1º, diz:

A partida, prova ou equivalente poderá ser anulada se ocorrer, comprovadamente, erro de direito relevante o suficiente para alterar seu resultado.

Isso não é opinião de um torcedor. É a REGRA.

Finalmente, o texto de Juca inventa o regulamento de ocasião, ao chamar o pedido de anulação do jogo de "golpe desnecessário". Como assim, "desnecessário"? Quer dizer que cumprir a regra é uma opção? Se o Brasileirão está "belo", então é permitido não cumprir seu regulamento?

Há outros pontos de que discordo na coluna. Dizer que a anulação do gol foi "prontamente assinalada pelo bandeirinha" é errado. Qualquer um que tenha visto o jogo – e tenho certeza que Juca viu – sabe que o bandeirinha, equivocadamente, VALIDOU o gol de Henrique. Tanto que o juiz, depois de consultar o bandeira, correu para o meio de campo. Caso ainda paire ALGUMA dúvida sobre isso, sugiro assistir esse vídeo, a 0:36:

Mas essas são questões menores, que empalidecem diante do fato de que boa parte de nossa imprensa se revolta quando as regras são cumpridas.

E antes que perguntem, sim, sou torcedor do Fluminense e tenho um blog pessoal de torcedor, em que trato meu time como a maior coisa existente no sistema solar e discuto com amigos e torcedores rivais, que são xingados e me xingam de volta – de "Florminense", "Tapetense" e outras coisas menos polidas. Como disse outro jornalista que admiro muito, Mauro Cezar Pereira, ninguém nasceu em chocadeira.

Felizmente, a discussão aqui não é sobre opções clubísticas, mas sobre argumentos. E torço para que os argumentos prevaleçam. Mesmo se o STJD recusar o pedido de anulação da partida, só o fato de isso ter merecido tanta repercussão será benéfico para o campeonato, pois inibirá futuros casos de interferência externa nas partidas e, quem sabe, pressionará os dirigentes a lutar pela implementação do uso do vídeo em lances polêmicos.

P.S.: Só para esclarecer: minha coluna está na seção de "Entretenimento" do UOL, e os temas tratados aqui são, geralmente, música, cinema e livros, mas pedi à chefia uma licença especial para mudar um pouco o foco. Amanhã o blog volta ao "normal". Abraços a todos (e, especialmente, ao Juca).

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.