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Mortes, sangue e Hells Angels: como os Stones mataram o sonho hippie

André Barcinski

03/10/2016 05h59

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Em 6 de dezembro de 1969, os Rolling Stones realizaram um show gratuito no autódromo de Altamont, 90 km a leste de São Francisco. O concerto foi marcado pela violência. A gangue de motociclistas Hells Angels espancou dezenas de pessoas, e o excesso de drogas e álcool causou incontáveis brigas e overdoses. Uma atmosfera de medo tomou de conta dos cerca de 300 mil espectadores. Ao fim do concerto, quatro pessoas haviam morrido: um rapaz, chapado de LSD, morreu afogado em um canal; dois outros foram atropelados por um motorista alucinado de anfetamina, e um jovem negro de 18 anos, Meredith Hunter, morreu esfaqueado por um Hells Angel chamado Alan Passaro.

Muitos consideram a tragédia de Altamont o fim da era hippie de paz e amor, um choque de realidade na utopia da contracultura. Na mesma semana, a polícia desvendava as chacinas ocorridas quatro meses antes, quando a "Família Manson" – um bando de psicopatas liderado por Charles Manson, amigo de músicos como Dennis Wilson, dos Beach Boys, e conhecido de Neil Young – assassinara nove pessoas. O sonho, como diria John Lennon, tinha acabado.

downloadO registro mais famoso sobre Altamont é o documentário "Gimme Shelter" (1970), dirigido pelos irmãos Albert e David Maysles. No filme, os Stones são mostrados como vítimas das circunstâncias. A banda parece ter sido pega de surpresa pela violência do show, e Mick Jagger se mostra abalado pela tragédia inesperada. Mas um novo livro, "Altamont – The Rolling Stones, the Hells Angels, and the inside story of rock's darkest day", de Joel Selvin, mostra que a história não foi bem assim. Na verdade, os únicos que lucraram com Altamont foram Jagger e sua trupe. Mais do que uma tragédia inesperada, Altamont foi resultado de arrogância, irresponsabilidade, ganância e de uma egotrip monstruosa de Jagger, que saiu da experiência alguns milhões de dólares mais rico.

O livro de Selvin conta toda a história do concerto em Altamont e das pessoas envolvidas, incluindo personagens coadjuvantes e praticamente desconhecidos, mas nem por isso menos fascinantes. O autor nos apresenta Goldfinger, um traficante que perdeu a mão na hélice de um avião e a substituiu por um gancho dourado, e Jon Jaymes, um sujeito misterioso e que não fazia parte do círculo de amizades dos Stones, mas que logo passou a dar ordens ao staff da banda e agir como organizador do show (depois, descobriu-se que ele tinha ligação com o crime organizado e era fugitivo do programa de proteção a testemunhas do FBI). Selvin traça ainda perfis sensacionais de Meredith Hunter, um estiloso e galanteador bandido com uma ficha corrida de cinco metros, e de seu algoz, o motociclista Alan Passaro, leão de chácara dos Hells Angels e que acabaria, ele próprio, morrendo assassinado. É uma turma e tanto.

Além dos Stones, o concerto em Altamont contou com Santana, Jefferson Airplane, Crosby, Stills, Nash & Young e Flying Burrito Brothers. O Grateful Dead também tocaria, mas desistiu quando percebeu o caos que se instalara no evento. Havia 300 mil pessoas espremidas em torno de um palco baixo e frágil; boa parte da plateia estava louca de um ácido certamente misturado a anfetamina e estricnina, que causara incontáveis overdoses e surtos psicóticos; não havia policiais, e a "segurança" era feita por uma tropa de Hells Angels bêbados e cheirados, que haviam surrado no palco o cantor do Jefferson Airplane, Marty Balin, e não viam problema em andar com suas Harleys no meio da plateia. Até para uma banda como o Grateful Dead, acostumada a tomar LSD no café da manhã, aquilo era loucura demais. Jerry Garcia e sua trupe subiram num helicóptero e se mandaram dali.

E como os Rolling Stones, uma das mais bandas mais famosas e poderosas do mundo, se meteram numa roubada dessas? Joel Selvin explica: devido aos egos descomunais de Mick Jagger e cia.

O INFERNO ASTRAL DOS STONES

Para entender o fiasco em Altamont é preciso lembrar as circunstâncias em que os Stones se encontravam em 1969. Foi uma época das mais difíceis: seguidas prisões e problemas com a polícia impediam turnês; Brian Jones, o carismático guitarrista fundador da banda, estava cada vez mais ausente, chapado de heroína. A última tour do grupo terminara em 17 de abril de 1967, com um show melancólico em Atenas. Fazia três anos que os Stones não tocavam nos Estados Unidos.

Em junho de 1969, Jagger e Richards entraram em estúdio em Londres para gravar "Honky Tonk Women", canção inspirada em caipiras que conheceram nas férias em um sítio em Matão, interior de São Paulo. Os dois nem avisaram a Brian Jones sobre a sessão, porque já o haviam substituído por Mick Taylor. Dias depois, foram à mansão de Jones e o despediram oficialmente, antes de anunciar um show gratuito no Hyde Park, em Londres, em 5 de julho, que marcaria a volta da banda e a apresentação oficial de Mick Taylor.

Mas Brian Jones estragou a festa. Dois dias antes, morreu afogado na piscina de sua mansão, e o show do Hyde Park, que deveria ser uma celebração de recomeço para os Stones, virou um velório para Jones. Depois do show, Jagger e a namorada, a cantora e compositora Marianne Faithfull, foram filmar "Ned Kelly" na Austrália. Deprimida, Marianne tentou se matar, engolindo dezenas de pílulas para dormir. Jagger chamou a ambulância. Ela acordou seis dias depois. "Achei que havia perdido você", disse Jagger. Marianne respondeu: "Wild horses couldn't drag me away" ("Cavalos selvagens não seriam capazes de me arrastar daqui"). Jagger não esqueceria as palavras.

JAGGER CONTRA WOODSTOCK

Em 1969, o maior medo de Mick Jagger era ser considerado ultrapassado. Na última turnê do grupo, dois anos antes, os Stones ainda faziam shows de meia hora para um público de meninas adolescente, que passavam o tempo todo berrando e nem ouviam a banda. No período em que Mick, Keith e cia. passaram às voltas com a polícia e com as muitas overdoses de Brian Jones, outros nomes haviam surgido na cena: Cream, Jimi Hendrix, Santana, Led Zeppelin, The Doors, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Sly and the Family Stone e Crosby, Stills, Nash & Young. Todos faziam shows longos, demonstravam virtuosismo musical e apelavam a um público adulto. Os Stones estavam perigosamente defasados.

Jagger decidiu – era ele quem mandava, de fato, na banda – que os Stones voltariam à América em 1969 para lançar seu novo disco, "Let It Bleed", em uma grande turnê de 24 shows em 16 cidades. Seria um acontecimento, com palco e sistema de som especialmente montados para a banda e ingressos caríssimos, e terminaria com um show gratuito em São Francisco, junto a duas das mais amadas bandas da cidade, Grateful Dead e Jefferson Airplane. O festival de Woodstock havia rolado em agosto, e os Stones queriam fazer sua própria versão de Woodstock (que, é bom lembrar, havia vendido 186 mil ingressos antecipadamente e só virou um festival "gratuito" porque 500 mil pessoas compareceram e não havia grade capaz de detê-las).

Jagger soube que o cineasta Michael Wadleigh havia filmado Woodstock para um documentário, e contratou os irmãos Albert e Davis Maysles para registrar a turnê dos Stones. O plano era correr com a montagem para lançar o filme antes de "Woodstock", programado para março de 1970.

QUEM PRECISA DE POLÍCIA?

A turnê rolou sem grandes incidentes até 30 de novembro, quando a banda fez o penúltimo show, na Flórida. Mas os problemas logísticos em relação ao concerto gratuito se avolumavam: Chip Monck, empresário do Grateful Dead, havia conseguido permissão para realizar o evento no Golden Gate Park, em São Francisco, mas os Stones se meteram nas conversas com a cidade, que cancelou o alvará. Alguém conseguiu então o autódromo Sears Point, um local com ótima infraestrutura, mas os donos pediram mais dinheiro quando descobriram que o show não seria apenas a festa gratuita que os Stones estavam divulgando, mas seria usado para fazer um filme sobre a banda. Jagger recusou-se a pagar um centavo a mais e mandou sua equipe continuar procurando um local. Trinta e seis horas antes da data marcada, ninguém sabia onde seria o tal megaconcerto.

Enquanto o staff e os advogados dos Stones corriam para encontrar uma saída, a banda se mandou para o Sound Studios, no Alabama, onde gravou três músicas que entrariam no disco seguinte, "Sticky Fingers": "You Gotta Move", "Brown Sugar", e a balada country "Wild Horses", em que Jagger usou, no refrão, a frase de Marianne Faithfull. Veja a banda ouvindo "Wild Horses" no estúdio no Alabama (o sujeito ao lado de Keith é Jim Dickinson, que tocou piano na faixa):

Foi aí que Dick Carter, dono do autódromo de Altamont, ligou para os Stones e disse que cederia o local gratuitamente. O autódromo estava à beira da falência, e Carter precisava de publicidade. Altamont ficava numa área remota e cercada de fazendas. O lugar era tão isolado que o condado inteiro só contava com dois carros de polícia. Jagger adorou, já que não queria policiamento no show. Toda a segurança seria feita pelos Hells Angels, em troca de 500 dólares em cerveja.

Em 36 horas, a produção montou um palco mequetrefe, amarrado com arame, e o Grateful Dead emprestou seu famoso sistema de som e luz, que não funcionou a contento por causa da precariedade dos geradores alugados. Quando Santana chegou para abrir o show, na tarde de sábado, 6 de dezembro, a situação já era calamitosa: não havia banheiros, atendimento médico ou venda de água e comida. Dezenas de milhares de pessoas haviam passado a noite no local, sob um frio de zero grau e um vento incessante, tomando vinho barato e montanhas de drogas. Antes que qualquer nota soasse do palco, um hippie se jogou num canal que cortava a propriedade e morreu afogado.

Não havia barreira entre o público e as bandas, e muitos espectadores subiram no palco, que ameaçava desabar. Os Hells Angels tomaram conta do palco e começaram a espancar pessoas com tacos de sinuca e correntes. Não pouparam nem as bandas locais: um motociclista gigante, apelidado Animal e usando um bizarro chapéu de pele de coiote, deu um murro na cara de Marty Balin, do Jefferson Airplane (dá para ver aqui, a 3m43s):

Quando os Stones chegaram ao local, a situação estava completamente fora de controle: Jagger desceu do helicóptero, andou alguns passos e levou um murro na cara, desferido por um fã alucinado. Era um sinal do que estava por vir.

"Gimme Shelter", o filme, mostra a atmosfera de terror e violência que envolveu a apresentação dos Stones. É nítido o pânico nos rostos de Jagger e Richards ao perceberem que não tinham nenhum controle da situação. Esta sequência, em que a banda toca "Under My Thumb" e que termina com Alan Passaro esfaqueando Meredith Hunter (que havia sacado um revólver), é certamente um dos momentos mais tensos e memoráveis da história do cinema documental. A imagem do fã, completamente transtornado de drogas, se contorcendo numa bad trip ao lado de Jagger, é aterrorizante e inesquecível, e dá uma boa ideia da insanidade que foi Altamont:

SIMPATIA PELO DEMÔNIO

Assim que acabou o show, os Stones entraram correndo num helicóptero e fugiram de lá. No dia seguinte, Jagger embarcou em um voo para a Suíça, levando uma mala com 1,8 milhão de dólares arrecadados na turnê, que o cantor prontamente depositou em um banco.

As mortes em Altamont foram notícia em todo o mundo, e os Stones, subitamente, estavam de volta à vanguarda da contracultura. Eles eram, de novo, a banda mais perigosa do rock, cantando sobre a simpatia pelo demônio e exortando jovens a lutarem nas ruas. De sua mansão no sul da França, destino escolhido para fugir dos altíssimos impostos na Inglaterra, Jagger negociou os direitos do filme com a Universal, que lhe pagou um adiantamento de um milhão de dólares. "Gimme Shelter" recolocaria os Stones no topo da lista de inimigos públicos.

I know, it's only rock and roll, but I like it.

Sobre o autor

André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Em 2019, dirigiu a série documental “História Secreta do Pop Brasileiro”.

Sobre o blog

Música, cinema, livros, TV, e tudo que compõe o universo da cultura pop estará no blog, atualizado às terças-feiras.